Levantamento feito entre 28 de julho e 19 de setembro de 2021

A realização de um segundo levantamento sobre o andamento da vacinação nos quilombos revela que, apesar de quilombolas figurarem como grupo prioritário para a imunização contra a Covid-19 e passados seis meses desde a apresentação por parte do governo federal de um Plano Nacional de Operacionalização para vacinação das comunidades quilombolas, a execução do processo de vacinação nos quilombolas caminha a passos curtos.

Sobre o estudo

 

Este levantamento foi produzido pela Conaq em parceria com a Terra de Direitos e Ecam Projetos Sociais como  resultado da articulação de uma rede de trabalho colaborativo criada para monitorar o andamento da vacinação nos quilombos. Um questionário com perguntas abertas e fechadas foi aplicado por lideranças em quilombos de diferentes estados brasileiros.

Esse boletim marca a série de ações lideradas pela Conaq no enfrentamento à pandemia da Covid-19 nos quilombos e no monitoramento da vacinação.

 

Acesse o boletim completo em PDF aqui

 

 

 

Sobre os problemas relatados nos quilombos:

 

  • Em alguns casos a vacinação não chegou ao quilombo, fazendo com que quilombolas tivessem que se deslocar a outra comunidade para terem acesso à vacinação como grupo prioritário.
  • A má condição das estradas também foi um fator que dificultou a vacinação em vários quilombos. Houve dificuldades tanto por parte de profissionais, quanto por parte de quilombolas, no trajeto de ida e volta às comunidades para acessar a vacinação ou ofertá-la.
  • Falhas na garantia de acesso a informações com qualidade sobre a vacinação por parte das secretarias municipais de saúde também foi um problema recorrente. Segundo relatos, a data de início da vacinação não  foi anunciada anteriormente, ou foi anunciada com pouca antecedência, dificultando a mobilização nos quilombos.
  • Aspectos burocráticos, como a falta de documentação pessoal por parte de alguns quilombolas, também impediram o acesso à vacinação.
  • Em alguns quilombos, a demora no início da vacinação, ou mesmo em completar o processo de imunização, fez com que quilombolas fossem vacinadas e vacinados, pelo critério de  faixa etária, dentro do público geral, havendo risco de que tal fato não tenha sido registrado enquanto vacinação de quilombolas  (grupo prioritário). Esse resultado sugere um problema na exatidão dos dados oficiais sobre a população quilombola vacinada, bem como a provável existência de subnotificação nos dados sobre vacinação desse grupo.
  • Apesar de o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 em comunidades quilombolas prever o atendimento domiciliar no caso de pessoas com dificuldades de locomoção, alguns quilombos indicaram que pessoas idosas e pessoas com aquela condição não receberam este atendimento por profissionais de saúde
  • Pelo fato de o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 em comunidades quilombolas proposto pelo governo apresentar relação de municípios com localidades quilombolas com respectiva estimativa populacional  baseada no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, aqueles municípios que  não estavam identificados nessa lista prévia não receberam vacinas destinadas à vacinação prioritária de quilombolas. Nesses casos, as lideranças precisaram acionar o município e o Estado para garantir o fornecimento das vacinas e, com isso, o início do processo de imunização no quilombo atrasou.
  • Foram identificados  empecilhos à vacinação quilombola criados pelos municípios, tais como: inscrição no CadÚnico como critério para acesso à vacina; não reconhecimento da identidade quilombola, mesmo diante de certificação pela Fundação Cultural Palmares;  negativa de vacinação em território ainda não certificado, ainda que este se tenha  autodeclarado nos termos da Convenção nº 169, da OIT.
  • Também foi possível perceber que houve dificuldades por parte do poder público em lidar com os casos de pessoas que, na aplicação da primeira dose, recusaram a vacina e, na ocasião da segunda dose, optaram por se vacinar. Nesse tipo de situação, em alguns quilombos, houve necessidade de se aguardar a vinda de mais doses.
  • Além disso, é perceptível que houve, em alguns quilombos, a dificuldade de quilombolas completarem o processo de imunização com a segunda dose: em alguns casos, quilombolas  que têm a necessidade de sair do território para trabalhar sazonalmente em outros locais (como na cultura do café); em outros, quilombolas que se recusaram a tomar a segunda dose após apresentarem reações adversas na primeira dose.

 

 

 

Análise

 

A realização de um segundo levantamento sobre o andamento da vacinação nos quilombos revela que, apesar de quilombolas figurarem como grupo prioritário para a imunização contra a Covid-19 e passados seis meses desde a apresentação por parte do governo federal de um Plano Nacional de Operacionalização para vacinação das comunidades quilombolas, a execução do processo de vacinação nos quilombolas caminha a passos curtos. Em razão disso, em muitos casos, pessoas quilombolas foram vacinadas pela faixa etária, dentro da campanha de vacinação voltada à população em geral.

Em termos de comparação, 45% da população quilombola consultada na amostra foi totalmente imunizada com o recebimento de duas doses ou aplicação de doses únicas, ao mesmo tempo em que, em todo o Brasil, 45% da população acima dos 12 anos – parcela prevista para receber o imunizante – também já estava totalmente imunizada na data de encerramento deste levantamento. Ou seja, à primeira vista, a vacinação quilombola parece caminhar no mesmo ritmo da população em geral. Contudo, quilombolas foram reconhecidos como população que deve receber atendimento prioritário na vacinação pelo Supremo Tribunal Federal em 24 de fevereiro de 2021, um mês após o início da vacinação geral no Brasil.

Essa morosidade pode ser atribuída a uma série de lacunas no Plano de Operacionalização para vacinação de quilombolas, apresentado pelo governo em março. O Plano apenas estabeleceu uma série de diretrizes, cabendo aos estados e, principalmente, aos municípios, a responsabilidade de viabilizar a vacinação. No entanto, como já apontado na primeira edição do Vacinômetro quilombola, a maior responsabilidade pela viabilidade dessa operacionalização recaiu sobre as próprias comunidades quilombolas, uma vez que coube às lideranças a responsabilidade de organizar o levantamento de dados e informações  para a vacinação.

Essa transferência de responsabilidade, no entanto, não apenas onera as lideranças, como também acentua processos de racismo institucional e criminalização contra elas. Em Alagoas, por exemplo, o Ministério Público Estadual abriu uma investigação para apurar a vacinação de pessoas não quilombolas dentro do grupo prioritário, e indicou uma liderança quilombola do estado como uma  das investigadas. A denúncia apresenta fotos de pessoas vacinadas no mesmo dia da imunização da comunidade quilombola, mas os nomes dessas pessoas não constavam na lista apresentada pela liderança quilombola. Esse é um forte exemplo de como o racismo institucional opera nessas situações, uma vez que a liderança quilombola sofre o processo de criminalização por supostas fraudes, quando não é sequer a pessoa com atribuição oficial e institucionalmente responsável por organizar o processo de vacinação.

 

Falta de dados

 

É preciso destacar que a série de problemas identificados na vacinação dos quilombos tem como motivo principal a falta de informações do poder público sobre a realidade da população quilombola no Brasil. A falta de um levantamento oficial feito pelo Estado é um dos primeiros empecilhos para a formulação e a execução de políticas públicas efetivas voltadas a essa população.

Para a elaboração do Plano de Imunização, por exemplo, o Ministério da Saúde utilizou como base dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que se amparou no Censo Demográfico realizado em 2010 para indicar uma estimativa de quilombolas no Brasil. O Censo realizado em 2010, no entanto, não contabilizou a população quilombola, diferentemente do que acontece com os povos indígenas, por exemplo. Dessa forma, os dados disponibilizados pelo IBGE para contribuir com o governo no Plano de enfrentamento à Covid-19 nos quilombos são apenas uma estimativa, produzida a partir do cruzamento de dados do Censo de 2010 com bases de dados de órgãos governamentais, como do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Fundação Cultural Palmares e Cadastro Único (CadÚnico). Essa estimativa, no entanto, não representa a realidade do quantitativo populacional quilombola no Brasil.

Essa discrepância entre o levantamento inicial apresentado pelo Ministério da Saúde que não contemplava a totalidade da população quilombola brasileira foi recorrentemente denunciada pela Conaq aos órgãos públicos, de forma a garantir que todas as pessoas quilombolas fossem contempladas com a vacina.

 

Comunicação ineficiente

 

A segunda edição do vacinômetro quilombola identifica, assim como na primeira edição, a ocorrência de situações de recusa à vacinação por pessoas quilombolas, motivadas quer por questões de convicção religiosa, quer por desinformação. Esta segunda edição aponta que um dos desafios enfrentados recentemente é garantir a vacinação a pessoas que  recusaram a vacina na primeira oportunidade, mas que, na aplicação da segunda dose, optaram por se imunizar. A mudança de postura indica tanto a possibilidade de  desmistificação de notícias falsas em torno da vacina quanto pelo reconhecimento de que, com o avanço da vacinação, a vacina representa uma proteção, e não um risco.

Mais uma vez, reforçamos que a recusa a vacinar não é algo que deve ser observado do ponto de vista apenas do comportamento individual isolado. Isso é resultado de um intenso processo de desinformação em relação à segurança da vacina – reforçado pelo próprio Presidente da República, que afirma não estar vacinado – e da falta de campanhas de comunicação efetivas voltadas à população quilombola.

Quando cobrado pela Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) sobre a realização de ações de comunicação para informar sobre importância e os passos necessários da vacinação, o Ministério da Saúde informou, durante reunião, que contratou uma empresa de comunicação para elaboração de um mapa dos territórios quilombolas e definição de estratégias de comunicação voltadas aos quilombos com base nesse mapa. O órgão indicou que foram gastos mais de meio milhão de reais em ações de comunicação dirigidas aos quilombos, como em materiais de rádio, imagens e textos.

Em diálogo com o executivo federal, a  Conaq chamou atenção para a falta de participação significativa do movimento social no processo de elaboração e disseminação da campanha, o que por si viola o princípio de construção participativa do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação, conforme pactuado no âmbito da ADPF 742. A construção de estratégias de comunicação por parte do Ministério da Saúde sem a participação significativa da Conaq também revela dificuldades de adequação e melhor difusão de conteúdos que dialoguem com este público, pelo fato de o material ter sido pensado por pessoas não quilombolas. Com isso, o Ministério alega investir um valor considerável em uma ação que apresenta resultados limitados, pela falta de participação do movimento quilombola. Por outro lado, o governo revelou-se incapaz de produzir dados de monitoramento que comprovem a eficácia da campanha em alcançar efetivamente quilombolas e incentivar a adesão à vacinação em massa.

Entre os resultados apresentados pelo Ministério da Saúde, por exemplo, está a reprodução de notícias em portais online que informam como foi o processo de vacinação nos quilombos – ou seja, não se configuram como materiais de comunicação voltados à sensibilização de comunidades quilombolas.

Muito embora a pesquisa conduzida pela Conaq sobre vacinação não tivesse como objeto monitorar o impacto da campanha, é fato que pesquisadores e pesquisadoras quilombolas em campo não perceberam  indícios de impacto dessa ação específica de comunicação na mudança de comportamento de quilombolas relativamente à vacinação.

 

Mudanças no Plano Nacional de Imunização (PNI)

 

Um problema recorrente nesta segunda etapa do mapeamento da vacinação nos quilombos e já apresentado na primeira edição do vacinômetro quilombola, a não vacinação de quilombolas que residem fora do território pode ser agora superada.

No início de setembro, uma nova decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, atendeu pedido da Conaq e determinou a vacinação imediata contra a Covid-19 de quilombolas residentes ou não nos territórios tradicionais, independentemente do estágio do processo de regularização fundiária do território.

Com isso, o Ministro ampliou o entendimento de uma própria decisão de junho deste ano, em que determinou que quilombolas que vivessem fora do território fossem incluídos no plano de vacinação, mas restringiu à vacinação a quilombolas que estivessem fora por motivos de saúde ou educação.  Agora, não há critérios mínimos para a imunização daquelas pessoas que estejam fora por motivos diversos, inclusive por questões de trabalho – uma situação que este levantamento identifica como bastante recorrente.

Essas decisões são parte das reivindicações apresentadas pela Conaq no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742, apresentada ao STF em setembro de 2020 e com autoria da Conaq junto a outros cinco partidos políticos. É preciso reforçar, mais uma vez, que a garantia do direito e execução da política pública só se dá após muita articulação e pressão por parte do movimento social quilombola e o consequente acionamento da Justiça.

 

Metodologia e desafios do levantamento

 

É preciso lembrar, no entanto, que este levantamento produzido pela Conaq tem o objetivo de produzir uma amostra de dados que permita monitorar a execução da política pública de vacinação. O vacinômetro não se propõe a realizar um Censo dos quilombos do Brasil, tal tarefa deve ser levada a cabo pelos órgãos oficiais de produção de dados sobre a população brasileira. Ao revelar problemas dominantes e caracterizar o andamento do processo de vacinação nos quilombos do Brasil, a Conaq pretende exercer seu papel de movimento social atuante na garantia de política pública de qualidade para a população quilombola.

Este papel é exercido superando obstáculos colocados pelos próprios órgãos responsáveis pela execução da política. O próprio processo de recolha de dados por pesquisadores e pesquisadoras quilombolas foi dificultado em alguns casos pela falta de colaboração por parte de secretarias de saúde no acesso e publicidade das informações. Por outro lado, a própria dificuldade de acesso a algumas comunidades colocam desafios ao movimento social que não foram enfrentados e superados pelo próprio poder público.

Um dos principais resultados que o vacinômetro quilombola tem produzido é mostrar a falta de controle e transparência no acesso a informações e dados sobre a vacinação do público quilombola. Este processo foi também dificultado diante do andamento da vacinação ampla, por faixa etária, tendo em vista que não houve uma atenção específica ou rigor por parte dos agentes de saúde para assegurar o registro necessário de informação sobre quilombolas como grupo populacional específico.

Dessa forma, é possível identificar diferentes formas de violação do direito humano à informação no que se refere ao processo de vacinação da população quilombola.  Há, por exemplo, uma nítida violação ao princípio da transparência por parte das gestões públicas – municipal, estadual e federal – ao não disponibilizarem dados desagregados sobre a vacinação quilombola. Da mesma forma, o direito à informação é violado frequentemente, seja na falta de dados concretos sobre o quantitativo populacional de quilombolas no Brasil, seja na falta ou má qualidade das informações ofertadas aos quilombolas sobre o processo de imunização das comunidades.

Imagem de capa: Vacinação no Quilombo Baião, Almas-TO | Foto: Maryellen Crisóstomo

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