Último boletim do levantamento da situação da vacinação nos quilombos do Brasil.

O terceiro Vacinômetro Quilombola mostra tendência de não solução de problemas que devem se repetir na aplicação da dose de reforço e na vacinação de adolescentes quilombolas, por problemas na execução da imunização, por falta de dados e por desinformação. Ao mesmo tempo, esta edição mostra que as denúncias apresentadas pela Conaq ao Supremo Tribunal Federal quanto às dificuldades apresentadas nos quilombos tiveram resultado, e puderam em parte ser superadas.

Acesse o boletim completo em PDF aqui

 

Sobre o estudo

 

Este levantamento é produzido pela Conaq em parceria com a Terra de Direitos e Ecam, como  resultado da articulação de uma rede de trabalho colaborativo criada para monitorar o andamento da vacinação nos quilombos. Um questionário com perguntas abertas e fechadas foi aplicado por lideranças em quilombos de diferentes estados brasileiros.

Este monitoramento ocorre desde junho de 2021, e análises periódicas são produzidas, em média, a cada 45 dias. Você pode conferir a série histórica deste levantamento e mais informações sobre os quilombos consultados aqui (Edição 1 | Edição 2)

 

Situação dos quilombos consultados durante o levantamento:

 

  • 94 quilombos (46%) indicaram estar totalmente vacinados
  • Apenas 10 quilombos indicaram que quilombolas abaixo dos 18 anos estão sendo vacinados
  • 147 quilombos (72%) ainda não são titulados
  • 200 quilombos (98%) são certificados
  • 72 (35%) quilombos apresentaram algum tipo de problema durante a vacinação

 

Problemas identificados:

 

  • 31 quilombos identificaram casos em que houve recusa individual à vacinação
  • 13 apresentaram dificuldades no planejamento e execução da política de vacinação
  • 7 quilombos informaram a não  vacinação de quilombolas que não residem no território
  • 5 quilombos apresentaram problemas de doses insuficientes
  • 5 destacaram casos em que a imunização dos quilombolas está incompleta
  • 5 quilombos registraram a vacinação de quilombolas por faixa etária, fora do grupo prioritário

Análise

 

Esta terceira edição do Vacinômetro Quilombola encerra o período de monitoramento da vacinação nos quilombos feito pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em parceria com a Terra de Direitos e a Ecam. Desde junho deste ano, uma rede de articuladores locais e regionais ajudou a mapear e a identificar a situação da vacinação de quilombolas em diferentes partes do país. Quilombolas foram reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como grupo prioritário de vacinação contra a Covid-19, em fevereiro deste ano, como resultado da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 742, movida pela Conaq e por partidos políticos.

Ao longo deste levantamento foi possível observar que algumas dificuldades foram sendo superadas – principalmente por meio da atuação da Conaq no acompanhamento da política pública -, enquanto novos desafios vão surgindo com a mudança de orientações em relação a aplicação da vacina, como a ampliação do público e mesmo a necessidade de uma terceira dose de reforço.

A primeira edição do vacinômetro quilombola, por exemplo, identificou que um dos maiores problemas enfrentados nos quilombos era relacionado à não vacinação de quilombolas que estavam residindo fora do território, por motivos diversos. A falta de políticas e de incentivos na geração de renda e permanência nos territórios contribui para que as pessoas quilombolas tenham a necessidade de se deslocar para grandes centros urbanos ou para outros locais, de forma sazonal, por motivos de trabalho e mesmo por questões de saúde e educação. Inicialmente, a política de vacinação do grupo prioritário se restringiu apenas às pessoas que estavam dentro dos quilombos. Posteriormente, em decisão, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, alargou o entendimento de que o direito a vacinar vincula-se à condição e à identidade de quilombola e não apenas ao território. O ministro determinou, então,  que a vacinação deveria abranger quilombolas que residissem fora do quilombo, mas mencionou apenas situações em que a residência em outro local se deve a motivos de saúde e/ou estudos. Foi a partir de novo pedido da Conaq que o ministro Fachin determinou, em setembro, que a vacinação para quilombolas residentes fora do território fosse ampliada de maneira geral.

Se no primeiro vacinômetro elaborado pela Conaq a não vacinação das pessoas que estavam fora do território foi um problema identificado em ao menos 12% dos quilombos mapeados, nesta última edição, cinco meses depois, esse mesmo problema é identificado em 3,5% dos quilombos. Isso demonstra que os pedidos apresentados pela Conaq dentro da ADPF 742 são acertados, no sentido de denunciar e buscar a superação dos desafios apresentados na execução da política de vacinação quilombola.

 

Problemas se mantém

 

Com o monitoramento da vacinação nos quilombos ao longo de seis meses, também foi possível identificar que, se por uma lado foi possível contornar uma série de obstáculos, por outro, os quilombos ainda enfrentam desafios recorrentes. A recusa individual de quilombolas de se vacinarem é um exemplo disso. Se no primeiro vacinômetro foi possível identificar que ao menos 12% dos quilombos consultados apresentaram casos de recusa individual à vacinação, esta terceira edição aponta que o mesmo problema é encontrado em quase 15% dos quilombos. Ainda que relatos apresentados nas respostas dos formulários indiquem que há um movimento de as pessoas procurarem a vacina, de forma tardia, ainda é expressiva a quantidade de idosos, por exemplo, que optaram por não se vacinar. Neste terceiro vacinômetro identificamos ao menos 209 quilombolas acima dos 60 que ainda não foram vacinados. Se considerarmos que, no início da coleta de dados do monitoramento da Conaq, em junho, todas as pessoas acima dos 60 anos no Brasil já deveriam ter tido acesso à vacina – mesmo fora do grupo prioritário -, é possível supor que as pessoas idosas desse grupo não haviam sido vacinadas até então principalmente por opção própria, motivadas por princípios religiosos e pela desinformação acerca da vacina – cuja eficácia e segurança foi frequentemente questionada publicamente pelo próprio governo federal, inclusive pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Somados os dados, as três edições do vacinômetro quilombola apontam que 872 quilombolas acima dos 60 anos, ou não receberam a vacina, ou receberam tardiamente. Esse fato é um grande ameaça à saúde quilombola, considerando que as pessoas acima dessa idade se configuram como grupo de risco da Covid-19.

Por outro lado, relatos apresentados nesta terceira edição do Vacinômetro Quilombola indicam que medidas tomadas nos quilombos e em espaços públicos contribuem para que as pessoas busquem a vacinação, como a restrição à entrada e circulação de pessoas não vacinadas em comércios ou instituições públicas.

 

Novos desafios

 

Desde o início do monitoramento da Conaq, orientações sobre a vacinação da Covid-19 também sofreram alterações no país. No fim de agosto, o governo federal anunciou a necessidade de uma terceira dose de reforço para a população acima dos 70 anos, e no dia 16 de novembro o Ministério da Saúde anunciou que a necessidade de uma terceira dose seria estendida a toda a população acima dos 18 anos. Além disso, em setembro, uma Nota Técnica divulgada pelo Ministério também orientou a vacinação da população entre 12 e 17 anos – orientação que chegou a ser suspensa durante uma semana.

Por essas mudanças ao longo dos últimos meses, é difícil identificar neste levantamento – cujo instrumento de coleta de dados foi construído considerando apenas a aplicação de duas doses da vacina e a vacinação de pessoas acima de 18 anos – os problemas apresentados nos quilombos a partir dessas novas definições. Neste terceiro vacinômetro, por exemplo, 93 quilombos sinalizaram que todas as pessoas elegíveis para a vacinação do quilombo foram vacinadas, mas não é possível identificar se neste dado está sendo considerada a vacinação prioritária de adolescentes quilombolas. Apenas 10 quilombos indicaram explicitamente, em respostas abertas, que adolescentes entre 12 e 17 anos estão recebendo a vacina.

No entanto, ainda assim é possível afirmar que a vacinação de adolescentes e aplicação da terceira dose de reforço já apresentam dificuldades, uma vez que nem o esquema vacinal determinado em decisão judicial por meio da ADPF foi cumprido integralmente. Além disso, não há qualquer tipo de estimativa populacional do público quilombola adolescente.

O próprio Ministério da Saúde chegou a alegar, durante reunião no âmbito da ADPF 742, que com a ampliação de quantidade de vacinas não haveria necessidade de incluir quilombolas em uma vacinação prioritária nesta nova etapa, pois seriam contemplados na campanha geral orientada pela faixa etária. Mesmo que posteriormente o próprio órgão tenha destinado doses para vacinação de reforço e de adolescentes, é preciso estar alerta para a execução dessa política.

É preciso destacar que a vacinação prioritária de quilombolas não diz respeito apenas à reserva de doses mas, principalmente, à logística que garanta que pessoas quilombolas sejam devidamente imunizadas. Isso passa por garantir que essas pessoas sejam informadas sobre a importância da imunização, tenham conhecimento do calendário de vacinação e possam ser vacinadas dentro de seus territórios ou até em suas casas, nos casos de pessoas com dificuldades de locomoção.

Preocupa-nos, portanto, que os desafios apresentados ao longo deste monitoramento – como a falta de informações, dificuldades no levantamento das pessoas com direito à vacina, a resistência das gestões municipais em reconhecerem quilombolas como grupo prioritário e problemas em estruturas e espaços destinados à vacinação – não sejam superados. A responsabilidade do sucesso ou não da campanha de imunização, nesse caso, é compartilhada entre governos federais, estaduais e municipais.

 

Importância do levantamento

 

A produção de boletins periódicos da Conaq sobre a vacinação quilombola é encerrada, neste momento, tendo cumprido importante papel no levantamento de dados e informações que permitem traçar um diagnóstico preciso, a partir de uma amostra, sobre a situação da vacinação nos quilombos.

A produção desses boletins nos permitiu identificar padrões e perspectivas sobre a execução da política de imunização quilombola, em diferentes períodos de tempo, ao mesmo tempo em que cobre uma grande lacuna deixada pelo governo federal na produção de informações confiáveis sobre a vacinação.

A falta de dados que embasem de forma efetiva a política de imunização quilombola é denunciada desde o início pela Conaq. Como já indicado na segunda edição do Vacinômetro Quilombola, para a elaboração do Plano de Imunização, o Ministério da Saúde utiliza uma estimativa populacional quilombola que tem como base dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esses dados são amparados no Censo Demográfico realizado em 2010, que não contabilizou a população quilombola, diferentemente do que acontece com os povos indígenas, por exemplo.

Dessa forma, a estimativa populacional utilizada pelo Ministério da Saúde, de 1.184.383 quilombolas no Brasil, é altamente questionável. Mesmo o  pedido de colaboração com estados e municípios para informar o quantitativo populacional quilombola, não foi bem sucedido.

Se o Ministério da Saúde apresentou dificuldades em estabelecer dados que embasam a política de imunização, o órgão também não disponibilizou, de maneira qualificada,  dados relacionados à execução da política.

Isso porque existem dois diferentes painéis de monitoramento da vacinação quilombola dentro das plataformas do governo federal. Um desses painéis, do Ministério da Saúde, revela que, apesar de ser grupo prioritário, apenas 45% dos quilombolas receberam as duas doses da vacina, enquanto 48% da população quilombola ainda não foi vacinada. Outro painel, disponibilizado dentro do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sugere que 42% da população alvo quilombola recebeu as duas doses da vacina, enquanto 51% não recebeu nem a primeira dose. Os dados apresentados pelo próprio governo, portanto, divergem.

É preciso destacar que o painel disponibilizado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foi uma das importantes conquistas da Conaq na garantia do direito ao acesso à informação e transparência, que reivindicou que fossem apresentados dados públicos relativos ao cumprimento das medidas determinadas na ADPF 742.  Entretanto, o painel apresenta falhas relativas à atualização das informações, bem como a ausência de dados específicos sobre as comunidades, revelando o descaso do poder público. Ainda que exista um link na página principal do Ministério, seria muito importante que fosse criada uma estrutura permanente com dados sobre o acesso à políticas públicas pelas populações quilombolas, tanto no que atine ao Plano de Contingência quanto ao Programa Brasil Quilombola.

Os números apresentados pelo governo federal também divergem de maneira expressiva das informações encontradas pela Conaq no monitoramento feito nos quilombos, que revela que 50% da população quilombola está vacinada com as duas doses, e que 2% ainda não receberam a vacina.

Essa diferença entre o levantamento independente produzido pela Conaq e os disponibilizados pelo governo federal pode ser explicada de duas formas:

  1. Inicialmente, é importante lembrar que o levantamento da Conaq buscou saber o quantitativo de quilombolas vacinados e não vacinados, não especificando se a vacinação aconteceu dentro do grupo prioritário. Dessa forma, são consideradas aqui as pessoas quilombolas que foram vacinadas pela faixa etária, dentro da campanha geral de vacinação, como aconteceu no caso de quilombolas acima de 60 anos e também nos casos de atraso na vacinação nos quilombos ou de impedimento por falhas na execução da política.
  2. Por outro lado, mesmo a vacinação de quilombolas fora do grupo prioritário deveria constar nos registros do governo, o que revela outra falha no controle e transparência da vacinação. Os relatos apresentados no Vacinômetro Quilombola nos revelam que há, na hora da vacinação, a falta de registro de que se trata de uma imunização do público prioritário quilombola. Ou seja, essas pessoas deixam de ser identificadas como quilombolas nos registros de vacinação, e o controle sobre a vacinação quilombola fica subnotificada nas informações do governo.

O levantamento produzido pela Conaq  mostra, portanto, um retrato mais fiel à realidade.  É por meio desse levantamento que podemos verificar, com maior confiabilidade, que a morosidade do Plano Nacional de Imunização Quilombola em apresentar respostas às novas definições da vacinação – além do atraso no envio de doses para os quilombos – tem feito com que muitas pessoas quilombolas acabem sendo vacinadas fora do grupo prioritário de vacinação.

Isso nos revela que a vacinação desse grupo prioritário seguiu o mesmo ritmo – e atualmente está até abaixo – da vacinação do público geral, como já apontado na segunda edição do Vacinômetro Quilombola. Atualmente, 73,2% da população brasileira acima dos 12 anos já recebeu duas doses ou dose única da vacina.

Se compararmos a vacinação quilombola com a vacinação de outros públicos prioritários, como de indígenas, também encontraremos diferenças: segundo dados do Ministério da Saúde, ao menos 82% dos indígenas estão vacinados com as duas doses, e 11% ainda não receberam a vacina. Uma maior efetividade na política de saúde contra a Covid entre indígenas pode estar associada ao fato de indígenas já terem sido incluídos no Censo Demográfico de 2010 e também pela existência de um Secretaria Especial de Saúde Indígena. Esses fatos associados aos bons resultados alcançados na vacinação indígena indicam a efetividade dessas ações e reforçam a necessidade de implementação de uma política de saúde especial quilombola.

 

Política de não-política

 

Este material explicita, uma vez mais, a dificuldade do governo no planejamento e acompanhamento da política pública voltada à população quilombola. Os relatos apresentados – inclusive nos Vacinômetros Quilombolas anteriores – mostram que, mesmo com uma determinação judicial, há resistência na aplicação da política pública: seja no questionamento de quilombolas como grupo prioritário, seja na transferência de responsabilidade dos municípios para as lideranças nos territórios. Percebe-se, nesses casos, que a execução da política pública depende basicamente da iniciativa e do trabalho dos próprios quilombolas. Ou seja, não se trata de uma política executada com a participação quilombola, mas executada principalmente pelo trabalho das lideranças quilombolas na identificação e na convocação das pessoas do território para a vacinação.

Permanece a invisibilidade. O governo, ao invés de  aproveitar o processo de implementação das medidas determinadas na ADPF e constituir um ativo de dados que certamente auxiliariam nas próximas etapas do processo vacinal, além de permitir novas  análises para a qualificação no atendimento deste público, opta por generalizar e ignorar suas demandas específicas. Neste sentido, perdem as populações quilombolas e perde a sociedade brasileira pela desconsideração da sua diversidade sociocultural. Perde também o Estado Brasileiro quando os seus poderes não se revelam harmônicos e a administração pública resiste em reestruturar suas prioridades e ações.

É preciso lembrar que a dificuldade na execução da vacinação quilombola não se restringe apenas a essa política: há precariedade na política de saúde, trabalho, educação, e mesmo na certificação e titulação dos territórios quilombolas. O atual presidente da república, enquanto pré-candidato, chegou a afirmar que em seu governo não haveria “nem um centímetro para quilombola ou reserva indígena”. Percebe-se, portanto, que a falta de novas políticas ou mesmo o enfraquecimento de políticas públicas quilombolas já existentes é, na verdade, parte de uma política que opta por não proporcionar políticas para a população quilombola.

Essa opção é reflexo da própria naturalização de uma postura abertamente racista de Estado, que dá novos contornos ao racismo institucional. Um levantamento produzido pela Conaq e pela Terra de Direitos, por exemplo, identificou 55 discursos racistas proferidos por autoridades públicas entre 2019 e 2020. São discursos que incitam à retirada de direitos da população negra, com teor supremacista branco ou que reforçam estereótipos racistas proferidos por membros do executivo, legislativo e do próprio poder judiciário que permanecem sem responsabilização e que aceleram um processo de desmonte e retirada de direitos da população negra e quilombola.

O Vacinômetro Quilombola é, neste cenário, um dos instrumentos de denúncia que não deixa invisível a situação enfrentada nos quilombos durante a execução de uma política. Esta é mais uma das ferramentas de pressão fornecidas pela Conaq, que contribuem na reivindicação da garantia do direito à vida e à saúde quilombola. Mesmo diante de tantas adversidades, a conclusão desta etapa evidencia a força do movimento quilombola e sua atuação incansável e transformadora.

 

Imagem de capa: Vacinação no quilombo Baião, Almas-TO| Foto: Maryellen Crisóstomo

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