Observações relevantes relatadas nos quilombos

  • Foram registrados ao menos 6 conflitos com governos municipais que não aceitaram quilombolas como grupo prioritário para a vacinação.
  • Apesar de alguns quilombos já terem iniciado a vacinação, algumas comunidades dentro dos territórios ainda não iniciaram o processo.
  • Houve casos em que a vacinação só iniciou após acionamento da Justiça.
  • Houve 22 casos de pessoas que foram vacinadas com uma vacina de tipos diferentes entre a primeira e a segunda dose.
  • Em razão de surtos de Covid-19 dentro das comunidades, alguns quilombolas tiveram que se recuperar e não puderam tomar a vacina na data prevista.
  • Houve casos de racismo vivenciados desde a fase inicial de diálogo com representantes do poder público municipal, para a realização do planejamento da vacinação, até a sua efetiva realização, nas comunidades ou nas unidades de saúde. Há relatos de que quilombolas tiveram sua identidade questionada pelos agentes de saúde e que optaram por não se vacinar com receio de criminalização.
  • Falta de iniciativa do poder público municipal no deslocamento para comunidades ou uso reiterado do argumento do desconhecimento das comunidades como justificativa para a não efetivação da vacinação.
  • Transferência da responsabilidade do poder público, com imposição por representantes públicos às lideranças quilombolas para que apresentem lista nominal de pessoas vacináveis como condição para a sua realização.
  • Relatos de dificuldade dos quilombos na organização destas listas das pessoas quilombolas e da falta de apoio público para o levantamento.
  • Situações de recusas da vacina por medo, desinformação ou por motivos de convicção religiosa em ao menos 16 estados. Houve casos inclusive de desistência da segunda dose
  • Registros de dificuldades no acesso às informações compreensíveis, e divulgação insuficiente sobre como a vacinação aconteceria nos quilombos.
  • Há denúncias de uso indevido das vacinas nos municípios, relativas ao direcionamento de doses a pessoas não quilombolas. Há igualmente denúncias de tentativas de se vacinarem nos quilombos pessoas que não são quilombolas, nem são familiares e não residem no território.
  • Relatos da falta de equipamentos públicos de saúde para estruturar a vacinação nos quilombos. Algumas comunidades onde não há estrutura adequada de saúde vacinação ocorre na casa de lideranças

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Análise

O trabalho de monitoramento da execução de uma política pública, como é a vacinação, traz muitas complexidades. No caso dos quilombos, essa realidade é ainda mais complexa, considerando o inefetivo acesso às políticas públicas e a correspondente falta de mecanismos de acompanhamento e monitoramento da situação enfrentada em cada comunidade.

Na prática, o planejamento, a execução e o monitoramento das poucas políticas públicas que chegam aos quilombos têm dependido quase exclusivamente do ativismo, empenho e organização das lideranças quilombolas. Com a vacinação não tem sido diferente. É flagrante a falta de conhecimento sobre o que constitui a identidade quilombola, qual a realidade do quilombo e dos membros da comunidade.

Esse problema se estende e atinge a própria produção de dados sobre vacinação, com todas as dificuldades que o Estado brasileiro reconhece e tem apresentado para produzir e divulgar dados desagregados da vacinação dos quilombos. Se a realidade das comunidades não é conhecida, não há como o Estado promover ações qualificadas.

O levantamento aqui produzido é, assim, inédito. Traz uma fotografia da realidade de execução de uma política pública nos quilombos e permite que se conheça dados sobre a situação enfrentada por quilombolas que, nesse momento, o próprio Estado brasileiro não é capaz de produzir. Naturalmente, um levantamento dessa natureza traz limites, uma vez que se está investigando e isolando no tempo uma situação dinâmica.

A cada dia a realidade sobre a vacinação do país avança e os cenários se alteram, sendo impossível capturar em um momento e manter atualizadas todas as informações de um processo que está em curso. Neste levantamento, apresenta-se uma situação cujas características retratadas decorreram no tempo do levantamento dos dados. Ainda com esses limites, e em plena crise da Covid-19, é importante conhecer retratos da execução de uma política de saúde para aquelas e aqueles que deveriam receber atenção prioritária do Estado.

 

Transferência de responsabilidade

O desconhecimento da realidade quilombola pelo Estado afeta a forma como a política pública é estruturada e distribuída, impactando a qualidade da decisão das pessoas responsáveis pela gestão pública. Transfere ainda para a liderança quilombola a responsabilidade pela execução da política.

Nesse sentido, diferentes problemas foram identificados no curso da vacinação nas comunidades. Na fase de planejamento, foram relatados problemas de acesso à informação e dificuldades de organização e divulgação da informação para que a mobilização para vacinação pudesse ser feita com antecedência, preparando a comunidade. Em muitos casos, coube às lideranças quilombolas o papel de fazer chegar às autoridades públicas a informação sobre o seu direito a vacinar enquanto grupo prioritário, o que resultou do trabalho da Conaq em informar às lideranças sobre a decisão favorável obtida com o ajuizamento da ADPF 742 no Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a vulnerabilidade desta população e a obrigatoriedade de planejamento para vacinação e de um conjunto de medidas para promoção  da saúde, segurança alimentar e proteção territorial na pandemia.

Em setembro de 2020 a CONAQ recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742, com objetivo de assegurar que a população quilombola fosse reconhecida como grupo prioritário pelo Estado brasileiro, com isso, incluída no grupo prioritário de vacinação. O STF reconheceu a legitimidade da CONAQ ao deliberar em favor da população quilombola em fevereiro de 2021, além da vacinação, o Supremo também deferiu pela garantia da segurança alimentar nos territórios e suspensão de ordens de despejos durante a pandemia.

Desde o início da Pandemia de COVID-19 a CONAQ tem atuado em conjunto com seus parceiros para mensurar os impactos do CORONAVÍRUS em territórios quilombolas e visibilizar as ausências de políticas públicas de mitigação desses impactos diante do descaso das autoridades sanitárias e do Estado brasileiro. Mais uma vez, a CONAQ apresenta um dado inédito da situação da população quilombola no enfrentamento à COVID-19 e denuncia o silenciamento do Estado subsidiado pela inexistência de dados oficiais sobre os quilombos e quilombolas do Brasil.

 

Desinformação e racismo

As dificuldades no acesso à informação são particularmente relevantes pela dimensão dos dados relativos à recusa individual a vacinar, muitas decorrentes do excesso de desinformação acerca da vacina para a Covid-19. Os relatos apresentados sobre a recusa refletem uma tendência nacional que resulta da omissão do governo e de figuras públicas em promover campanhas de sensibilização da população sobre a importância da vacinação massiva.

Nesse sentido, o próprio presidente da república foi um grande disseminador de desinformação, colocando em dúvida a eficácia da vacina. Além disso, é preciso considerar que o racismo também atua de forma a desestimular a vacinação por parte da população quilombola. Ao terem sua identidade quilombola questionada por agentes de saúde, algumas pessoas optaram por não serem vacinadas enquanto grupo prioritário pelo medo de suas identidades serem novamente postas em dúvida e, em razão disso, serem criminalizadas.

As situações de racismo se revelam em todas em todas as instâncias na execução da política pública de vacinação para a população quilombola: na negação do reconhecimento de quilombolas como grupo prioritário, no questionamento da identidade quilombola, na transferência de responsabilidade do governo para as lideranças das comunidades, na falta de estrutura adequada para vacinação dentro dos quilombos, no atraso e envio de doses insuficientes.

Ao operar em todas as instâncias, o racismo institucional colabora ativamente no desestímulo à vacinação, impondo uma série de dificuldades à população quilombola para acesso à uma política de saúde básica. O racismo gera ainda a desresponsabilização da pessoa responsável pela gestão pública e a transferência responsabilidade à pessoa quilombola, como se a efetividade de uma política pública dependesse apenas de boa vontade ou de interesse dos sujeitos de direito. O racismo opera, assim, nas justificativas para explicar as falhas da política pública e para retirar quilombolas da condição de sujeitos de direitos. Essa situação é ainda mais agravada em um governo que profere abertamente manifestações racistas contra essa população, e que deliberadamente não avança na política de titulação dos territórios quilombolas.

 

Ausência de coordenação

Foram ainda relatadas dificuldades no trabalho colaborativo com algumas secretarias municipais na construção de listas da população a ser vacinada e divergências de entendimentos entre gestores sobre os critérios para o reconhecimento da identidade quilombola e quais pessoas do território com direito à vacinação.

Tal realidade revela a dificuldade de promover um trabalho coordenado entre os diversos níveis de gestão da política de saúde, de forma participativa, tendo em vista a uniformização dos entendimentos e critérios para a garantia de direitos à população quilombola. Em muitos casos, essa ausência de coordenação e uniformização das informações replica experiências de racismo institucional no acesso a políticas de saúde, levando quilombolas a uma verdadeira maratona para atender aos requisitos da pessoa gestora responsável no local ou até mesmo a acionar mecanismos judiciais para garantir o direito da comunidade a se vacinar. Situações desse tipo foram registradas em diferentes locais.

Na fase de execução da política, diferentes problemas relacionados à falta de informações e atendimento a situações específicas foram mencionados, como, por exemplo, atenção especial na vacinação de mulheres quilombolas grávidas; estruturação e divulgação prévia do cronograma de vacinação nas comunidades; ausência ou precariedade no transporte de pessoas até local de vacinação quando esta não foi realizada na comunidade; falta de informações e encaminhamentos dos casos das pessoas que, por sintomas gripais ou outras questões de saúde, não conseguiram se vacinar no dia designado; variedade de exigências impostas para vacinação relacionadas tanto à comprovação da identidade quilombola (carteirinha, inscrição no cadastro único, cadastramento na estratégia de saúde da família) quanto à exigência de residência no território.

 

Critérios para vacinação

O processo de garantia do direito a políticas públicas é um caminho longo por superação dos limites estabelecidos pelo Estado. São exemplos disso as discussões travadas no âmbito da ADPF 742 sobre os critérios para delimitar o direito de quilombolas à vacinação. Nesse sentido, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, proferiu importante decisão alargando o entendimento de que o direito a vacinar vincula-se à condição e à identidade de quilombola e não apenas ao território. Determinou assim que a vacinação deveria abranger quilombolas que residissem fora do território. Contudo, neste momento, esta decisão ainda limita os direitos de alguns quilombolas, uma vez que menciona apenas situações em que a residência fora do território se deve a motivos de saúde e/ou estudos. A Conaq defende que o território é um elemento central para a existência das comunidades enquanto quilombolas, contudo, o local de residência de uma pessoa quilombola não altera sua identidade e consequentemente sua condição de titular de direitos. Nesse sentido, quilombolas residentes fora do território por motivos diversos, como trabalho, precisam ser considerados como integrantes do grupo prioritário de vacinação.

Infelizmente, os dados mostram que quilombolas têm pago de diferentes formas o preço do atraso do Estado brasileiro em regularizar os territórios. A não garantia dos direitos territoriais tem gerado reflexos diretos na decisão de gestoras e gestores públicos sobre o acesso à vacina. O Estado se utiliza assim da própria omissão para inviabilizar o direito à saúde. Foram registrados casos de dificuldades no acesso à vacinação por quilombos ainda não certificados pela Fundação Palmares. Nesses casos, o Estado que falhou em garantir a regularização do território quilombola, usa a sua falha como critério para negar o acesso à política pública. Essa situação é agravada pela falta de um levantamento rigoroso sobre quantas comunidades quilombolas existem no Brasil. Os dados apresentados pelo Estado são insuficientes e acabam por invisibilizar muitos dos quilombos existentes.

O monitoramento das situações, a produção de dados e a visibilização das situações de violações de direitos são algumas das ferramentas utilizadas pela Conaq na luta pelos direitos quilombolas e contra o racismo do Estado. Com a publicação desse boletim esperamos dar mais um passo na luta por saúde pública de qualidade à população quilombola.

 

Acesse a 1ª ed. do Boletim

 

Imagem de capa:

Vacinação no quilombo Baião, Almas-TO
Foto: Maryellen Crisóstomo

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