27 maio

Uma quilombola brasileira em Harvard: reflexões sobre estigma e autoestima

*Por Gessiane Ambrosio Nazario Peres para  o Portal Geledés

No final do ano passado, recebi de uma amiga e companheira militante do Movimento Negro Unificado, a advogada Margareth Ferreira, uma mensagem contendo uma chamada de seleção de trabalhos para participar de um workshop de teses no Instituto de Pesquisas Afro-Latino-Americanas em Harvard

Entrei no site e vi os critérios para seleção, que consistiam em envio do resumo da tese e uma carta do orientador falando sobre o trabalho. Fiquei pensando logo nos impedimentos com relação à língua, pois não sou fluente em inglês, mas li que os trabalhos poderiam ser enviados nas três línguas: português, inglês e espanhol. Primeira barreira, rompida. Então pensei: “Por que não?” Entretanto um complexo de inferioridade ainda falava lá dentro de mim: “Eu em Harvard?” E, por outro lado, uma voz dizia: “Vai! Por que não?” Havia também meu companheiro reforçando o lado positivo, é claro, incentivando-me a enviar o resumo. O lado positivo falou mais alto! Aliás, seria apenas o envio do resumo e, se fosse negado, quantas outras portas já se fecharam para mim? Quantos NÃO eu já levei de congressos e bancas? Então, preparei o resumo da tese e, graças a Deus, pude contar com o apoio irrestrito do meu orientador para me inscrever nessa seleção. Enviei o resumo e a carta do orientador e, prontamente, recebi a confirmação de recebimento no e-mail enviado pela secretária do instituto e responsável por toda a organização do evento, uma pessoa maravilhosa a qual eu viria a conhecer. Então, foi só esperar o resultado final em 26 de fevereiro deste ano, 2018.

Apresentação em Havard, fala sobre o movimento quilombola. Arquivo pessoal de Gessiane Nazario

Passada essa fase de enviar o resumo, procurei não ficar pensando muito para não me frustrar e ficar me sentindo inferior. Prossegui com meus afazeres de doutoranda. Depois, confesso que até me esqueci desse evento, por não acreditar mesmo que seria selecionada. Foi quando, na tarde do dia 26 de fevereiro, ao chegar a casa, fui checar as mensagens do celular. Foi quando abri a caixa de e-mail e vi a mensagem do instituto. Meu coração acelerou (sim, eu sou ansiosa). Respirei fundo com medo do NÃO. E veio a surpresa quando li a resposta me parabenizando pelo trabalho e pela seleção. Nesse momento, fiquei um tanto desnorteada e emocionada ao pensar: “Eu vou para Harvard”. Mostrei a mensagem ao meu companheiro para ele ler e confirmar se era aquilo mesmo que eu havia lido. Ele, ao ler, mudou sua expressão para uma de felicidade, saltou de alegria e me parabenizou. Liguei para minhas irmãs, minha mãe e meu pai, que, com muita felicidade e emoção, receberam a notícia.

Com o passar dos dias, fui me acalmando e meditando sobre essa minha ida à Harvard. Eu, mulher negra de origem pobre e quilombola, ir à Harvard… Entre meus pensamentos, comecei a pensar também no peso de minha responsabilidade com as identidades que eu carrego e assumo com muito orgulho. Meu trabalho de pesquisa é, além de uma investigação científica sobre o processo de implementação da educação quilombola em uma comunidade quilombola da Região dos Lagos no Rio de Janeiro, parte de uma luta pessoal que eu tenho travado desde 2010. Nessa época, a universidade apontou a obrigatoriedade do ensino de História de matriz africana nos currículos escolares, e a Faculdade de Educação flexibilizou o currículo do curso inserindo essa disciplina, quando eu pude dispor de ferramentas intelectuais para pensar sobre a condição de minha família negra e de origem quilombola, para não mais renegar e me abster de uma luta secular, pois até então considerava como quilombola apenas o meu avô que havia nascido e se criado na Rasa (bairro periférico do Município de Armação dos Búzios que abriga Comunidade Quilombola). Estudar sobre relações étnico-raciais na escola foi como mover uma grande nuvem que turvava os meus pensamentos e construções subjetivas racistas sobre mim e meu povo. Foi uma libertação. Realmente um processo psicológico em que Frantz Fanon e a Professora Maria das Graças Gonçalves, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, foram fundamentais, pois me ajudaram muito a compreendê-lo.

Durante esse intervalo entre o envio do resumo até receber a notícia do aceite do meu trabalho, fui convidada por uma colega da UFF a fazer uma fala sobre comunidades quilombolas numa Escola Estadual em Itaboraí. Nesse evento muito especial, do qual poderei relatar em outro momento, conheci o pastor Henrique Vieira, com quem pude compartilhar algumas das minhas angústias com relação à despolitização de alguns parentes quilombolas. Alguns meses depois, esse querido pastor me ligou dizendo que sentia no coração a vontade de vir até a Rasa para colaborar com um trabalho de conscientização através da fé cristã (a comunidade da Rasa é de maioria evangélica). Fiquei muito feliz com aquela ligação, pois me motivou a organizar uma “Celebração em ação de graças a Deus” com o objetivo de reunir os parentes quilombolas para lhes contar sobre minha ida à Harvard e o que isso significava para todos nós. O pastor Henrique traria uma mensagem de ânimo e conscientização, mas, infelizmente surgiram alguns problemas inesperados com ele e sua família que o impossibilitaram de vir. Então, ficou tudo sob minha responsabilidade mesmo. Pensei em como faria isso: falar sobre fé, política e minha ida à Harvard? Outro frio na barriga.

Separei alguns textos da Bíblia sobre gratidão, ânimo e fé. Na tentativa de fazê-los compreender em como nossa história se assemelha à história do êxodo do povo de Israel no Velho Testamento. Disse que os nossos ancestrais foram trazidos para esta terra à força, para serem escravizados. “Pisaram aqui pela primeira vez ali na praia, bem pertinho de nós. Derramaram sangue e suor, resistiram a um regime violento e, depois, ainda tiveram que pagar com muito esforço e suor para continuarem morando neste território. Passado algum tempo, os fazendeiros que os exploraram queriam expulsá-los das terras para lotear e vender, usando de várias estratégias cruéis, como queimar suas roças e soltar bois nas roças para que não tivessem mais como sobreviver. Muitas famílias, como a minha, tiveram de sair daqui por não terem meios de subsistência. Contudo muitas ficaram. Hoje, graças aos nossos ancestrais que resistiram e alguns primos que tomaram a iniciativa de, dentro da igreja, criar o Movimento Quilombola na Rasa e se somaram a outros companheiros quilombolas, conquistamos o direito a ter a nossa terra, a terra prometida, como o povo de Israel na Bíblia.” É bom esclarecer que, nesse meu discurso, estou longe de apoiar às atrocidades que o governo de Israel tem feito ao expropriar o território do povo palestino, mas precisei utilizar desse recurso, que se passou há milhares de anos com determinado povo, para fazê-los entender que nós, quilombolas, também estamos no deserto lutando para conquistar a nossa terra prometida. E, assim como nossos ancestrais resistiram, nós devemos continuar essa luta. Acredito que Deus nos trouxe de volta a esta terra para conquistá-la, e não para ficarmos passivos, alienados dentro de quatro paredes de um templo, esperando que as coisas caiam do céu. É preciso lutar, pois Deus não é um mágico ou mesmo um boneco cujos braços podemos mover com nossas orações. Somos nós quem devemos realizar a mudança e a justiça que tanto esperamos. Nós precisamos transformar o nosso cativeiro em alegria. Nós temos valor! Nossa história tem valor. O meu trabalho de pesquisa e tudo o que eu faço é para honrar a nossa história. Não sou apenas eu que vou para uma das melhores universidades do mundo, mas uma de nós! Eu sou parte de vocês, de uma história que ainda não acabou e Harvard quer ouvir a nossa história. Enfim, foi esse o discurso que fiz com meus parentes naquela noite. Após a minha fala, fiquei surpresa ao ver que elas e eles, que estavam ali, concordaram comigo. Todos se emocionaram, disseram que estavam muito felizes com o que estava acontecendo comigo e se sentiam representados. E ainda expuseram a vontade de fazermos mais encontros como aquele. Isso aconteceu numa sexta-feira antes da semana da viagem. Fui para casa muito feliz por essa noite tão especial em que pude falar para os meus parentes e contribuir para suas autoestimas enquanto quilombolas.

Passou o sábado e domingo. Enquanto estudava e lia os trabalhos dos outros participantes deste workshop, novamente fiquei muito nervosa, ansiosa e apreensiva. No domingo à noite, ao pensar que se aproximava o dia de ir à Harvard, fui tomada por um pavoroso sentimento de medo que só me fazia pensar em: “Quem sou eu? Como assim eu em Harvard? Não sou capaz! Não sou ninguém!” Pensei em desistir de ir, por medo de falar, por me sentir pequena demais para estar lá… Liguei para minhas irmãs que oraram comigo, li alguns versos de salmos… Parei um pouco para respirar e me acalmar, até dor no peito eu senti. Fiquei com muito medo, apavorada mesmo! Procurei me acalmar e fui conversar com meu companheiro, que me falou palavras de ânimo e conforto. Mas o aperto no peito persistia. Ao voltar para o meu quarto, lembrei-me de uma professora da Faculdade de Educação da UFRJ, Giovana Xavier, negra e militante, que foi convidada pelo mesmo Instituto para um evento diferente, estava compartilhando suas experiências na sua página da rede social. Ao me reportar a um texto dela publicado no Jornal Nexo (30/04/2018), fui compreendendo exatamente o que acontecia comigo. Em seu texto, intitulado “Vocês vieram para o grupo de autoajuda de usuárias de drogas?”, reproduzia uma fala preconceituosa que ouviu de um funcionário ao se referir às mulheres que frequentam seu curso de Intelectuais Negras. Giovana Xavier disse que pensou em escrever sobre esse assunto, enquanto estava no avião a caminho de Harvard, após dez anos de sua conclusão de doutorado na New York University.  Giovana Xavier disse que retornar lá como professora universitária causou-lhe certas “revoluções internas”. Ela explica, baseada em sua experiência docente, que leva suas alunas do curso Intelectuais Negras a pensarem na seguinte questão: “Quem tem o direito de ser reconhecido como intelectual no Brasil? Como as interseções de gênero, raça e classe se colocam na produção acadêmica e no espaço científico?” E, brilhantemente, ela responde, fazendo sumir de vez o aperto no peito que eu sentia, como se uma nuvem cinza saísse de dentro de mim para que a luz entrasse mais uma vez:

Para mulheres negras, ocupar o espaço acadêmico é um processo complexo porque desestabiliza o imaginário nacional de “nascidas para servir”, materializado em estatísticas como as do trabalho doméstico, no qual mais de 80% das trabalhadoras são negras. Já perdi a conta de quanto tempo costumo gastar pesquisando artigos, livros, documentários e criando metodologias que contribuam para que as estudantes despertem a percepção de que são intelectuais, no sentido de acadêmicas em formação.

A partir dessas palavras compreendi que o meu sentimento de inferioridade se deu por causa desse imaginário nacional ao qual nós, mulheres negras, fomos submetidas e induzidas a internalizarmos que somos um ser que existe para servir e estar em espaços subalternizados pela sociedade racista e machista em que vivemos, onde nossos corpos são vistos como objetos sexuais e jamais como capazes de produzir conhecimento. Também me ajudou a compreender e aceitar a minha condição de uma acadêmica em formação. Sendo assim, por que me cobrar tanto para que fizesse uma fala impecável? Então, lembrei-me das minhas ancestrais, Madalena, Bibiana, Tertela, Lúcia e Eugênia, que foram mulheres fortes, guerreiras corajosas que resistiram para que hoje eu existisse e, em memória delas, eu pudesse pisar em um lugar em que jamais imaginei estar para representar o nosso povo. Ler o texto de Giovanna Xavier me fez compreender a importância da sororidade entre nós, mulheres negras; e me estimulou a escrever esse texto para que outra companheira, que esteja se sentindo incapaz de fazer alguma coisa, saiba que esse sentimento de inferioridade foi socialmente construído por uma elite branca, escravizadora, para colonizar o nosso pensamento e impedir que conquistemos espaços feitos apenas para os descendentes deles.

Fui à Harvard consciente e segura do que minha ida representava. Levei a bandeira do movimento quilombola do Brasil, CONAQ, que ficou registrada na foto oficial do evento. Ouvi críticas ótimas ao meu trabalho que, com certeza, só me farão aperfeiçoá-lo. Registro aqui a minha gratidão à iniciativa deste Instituto de Pesquisas Afro-Latino-Americanas que, ao convidar mulheres negras e quilombolas, “intelectuais em formação”, num espaço academicamente tão bem visto, causam “revoluções internas” que nos transcendem, como é o caso de outros e outras quilombolas ao meu redor, motivados a lutar e valorizar suas histórias pelo simples fato de ter meu trabalho selecionado para tão importante evento.

Gessiane Nazário em Havard, mulher negra, quilombola e acadêmica. Foto do arquivo pessoal de Gessiane Nazário.

Destarte, a presença de uma negra quilombola na Academia mexe com as estruturas de um sistema feito para excluí-la. Sim, o mais importante da minha ida à Harvard é essa “revolução interna”, ocasionada em mim e que desejo que se multiplique a vários outros negros e negras quilombolas, e não quilombolas, de minha comunidade.

Autora: Gessiane Ambrosio Nazario Peres. Doutoranda em Educação(UFRJ), Mestre em Sociologia(UFF), graduada em pedagogia (UFF). Quilombola da Rasa.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

 ***Matéria original publicada no site do GELEDÉS- Instituto da Mulher Negra, em 26 de maio de 2018.
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