13 mar

RJ: Jovem quilombola é aprovada em medicina em universidade federal e comemora: “Esse lugar é nosso”

Por Letícia Queiroz

“Esse lugar é nosso. Sei quem sou, sei o que quero e para onde vou”. Foi o que disse a jovem Alícia de Oliveira Nascimento. Ela é da comunidade quilombola Maria Joaquina, localizado no Cabo Frio (RJ), e foi aprovada no curso de medicina na Universidade Federal do Pampa, no Rio Grande do Sul. Desde que nasceu mora no quilombo e enfrentou grandes dificuldades para concluir o ensino fundamental e médio por morar na zona rural. Aos 22 anos, na semana da Mulher, ela comemora uma vitória que parecia inalcançável.

“A ficha ainda está caindo. Foi emocionante ver o resultado, mas, além disso, foi uma
vitória muito grande, uma conquista. Sou uma mulher, negra, pobre, quilombola,
moradora de um bairro de periferia. A minha aprovação foi muito necessária para
mostrar que sim, a gente consegue. E a gente precisa só de uma oportunidade. Eu
sempre falo isso para os jovens do meu quilombo”, disse Alícia.

A jovem sempre estudou em escolas públicas e concluiu o Ensino Médio em 2019. Ela conta que foi a primeira da família a entrar na faculdade e que passou em um vestibular específico para quilombolas e indígenas. “Na minha família não tem ninguém que tenha conseguido alcançar o ensino superior, não tem ninguém formado. Foi uma conquista não só para a minha família, mas para toda a comunidade”.

Alícia comemorou aprovação com a família / Foto: arquivo pessoal

A jovem começou a focar nos estudos para a aprovação ainda no Ensino Médio. Ao todo, foram oito anos estudando. No último ano ela conta que a família precisou abrir mão de muitas coisas para pagar um cursinho pré-vestibular. “Tinha meses que tirava dinheiro de outras coisas para poder fazer o curso”, disse Alícia. Filha de Jane Oliveira, militante negra, educadora popular e coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), desde pequena Alícia percebeu que os caminhos para ela eram mais difíceis e foi vítima de muitas desigualdades.

“Estudei a vida inteira em escolas públicas e a gente sabe que é completamente diferente de uma escola particular. Além disso, minhas escolas eram longe da minha casa. A escola de perto da comunidade não tinha vaga suficiente pra todos os alunos e eu precisava estudar no município vizinho”, lembra.

O curso de medicina sempre foi o sonho de Alícia. Desde pequena ela afirmava que queria ser médica. Foram várias tentativas até conseguir. Mas a jovem, que nos últimos dias despertou emoção, também sofreu racismo e recebeu muitas críticas relacionadas às cotas raciais, ação afirmativa que torna possível e acessível o ingresso de pretos e pretas, pardas e pardos, indígenas e quilombolas nas universidades que só eram ocupadas por pessoas brancas.

“Conceição Evaristo já dizia: ‘combinaram de nos matar e nós combinamos de não morrer’. As pessoas, o sistema e o estado diariamente tentam dizer que a gente não pode, que a gente não consegue, que não é nosso lugar. Parece que sempre temos que estar no lugar de subserviência e eu não acredito nisso”. 

Alícia conseguiu vencer todas as barreiras no acesso à educação desde a infância. Já adulta, enfrentou o mesmo preconceito ao migrar do ensino médio para o superior. Ela conta que percebeu racismo até na comemoração da conquista. “Muita gente não ficou contente com minha aprovação. Por eu sempre dizer quem eu sou, me autodeclarar quilombola… e as pessoas serem contra processos seletivos específicos e das cotas e dos negros ocupando esses lugares. Não foi a primeira vez que fui vítima de racismo”,

Cotas raciais

Foto: Arquivo Pessoal

Após a aprovação, a jovem reafirmou a importância das cotas e dos processos seletivos específicos, políticas defendidas também pela CONAQ.

“A gente sabe que não é fácil e que se me comparar com um branco que estudou numa escola particular, óbvio que em uma prova essa pessoa passa na minha frente. Ele teve condições de estudo melhores, mais disponibilidade, mas acesso a informação, internet, livros”, explicou Alícia.

Sobre os ataques sofridos recentemente, ela conta que não foi a primeira vez que foi vítima de racismo. Desta vez a violência ocorreu também nas redes sociais. “Não foram as primeiras pessoas e talvez não sejam as últimas a serem racistas, mas estou preparada. Eu estou vivendo aquela frase da estudante da USP: ‘A casa grande surta quando a senzala aprende a ler’. E essa frase é verdadeira. E eles vão ter que engolir. Felizmente eu consegui e espero que outras mulheres, outras jovens consigam alcançar esse lugar que também é nosso. A gente não está pegando nada de ninguém. Se os brancos podem ser médicos, nós também podemos”.

Futura médica

A jovem, que vai ao hospital e postos de saúde com frequência por causa de um problema na perna, disse que em toda a vida foi atendida por uma médica negra apenas uma vez e que a profissional foi desligada do local de trabalho por autoridades.

“Quero me formar e ser uma boa médica. Quero atender principalmente na minha comunidade, onde as pessoas estão há 4 anos sem médico. Preciso que seja uma formação boa e vou me esforçar para isso como sempre me esforcei”.

Alícia conta que além de realizar um sonho pessoal será médica por toda a família e comunidade. Ela destacou a importância no acesso de políticas públicas, educação de qualidade e de saúde de qualidade. “É pelo meu povo. É muito difícil a gente ver uma médica que seja quilombola. Preto, pobre que não tem condições de acessar esses lugares que Há muito tempo eu achava que eram inalcançáveis”.

Foto: Arquivo Pessoal

 

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