08 dez

Racismo também se combate no STF

Por Conaq

Falhas Estruturais potencializam a letalidade da COVID-19 em Territórios Quilombolas

Mahommah Gardo Baquaqua nasceu livre, no século XIX, em Djougou, atual Benim. Após superar com a fuga os martírios da escravidão branca referiu-se assim aos escravocratas brasileiros: “acho que devem ser feitos de ferro, sequer possuindo corações ou almas”. Essa é também a conclusão a que devem chegar às pessoas que tomarem conhecimento de que o Estado brasileiro, principalmente o Governo Federal, ainda resiste a reconhecer o protagonismo, valorizar e apoiar as comunidades quilombolas nas lutas pela superação do racismo.

 

Ocorre que passados quase 10 meses da decretação formal da pandemia decorrente da COVID-19, o Governo Federal não adotou nenhuma ação significativa para viabilizar o combate aos efeitos do coronavírus nas comunidades quilombolas. Dessa omissão inconstitucional resultam em 171 mortes entre quilombolas que poderiam ter sido evitadas. Entre as mortes evitáveis está a da Sra. Carivaldina Oliveira da Costa, conhecida como Dona Uia, uma griô de 78 anos do quilombo da Raza, em de Armação dos Búzios, Rio de Janeiro.

 

Diante desse cenário de omissão com características genocidas a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao Supremo Tribunal Federal. Com essa iniciativa se espera que o Governo Federal seja obrigado a planejar e executar ações de combate aos efeitos da COVID-19 nas comunidades.

 

Nós quilombolas sabemos que em função do que dispõe a Constituição Federal o Estado está obrigado a adotar medidas que garantam a sobrevivência física, econômica, social e cultural de nossas comunidades. Entre essas ações é evidente que está a obrigação de garantia de acesso à saúde através de políticas públicas específicas a quilombolas, como também recomendam há muito a Organização Mundial da Saúde e a Organização Panamericana de Saúde. Essas políticas públicas específicas de saúde a quilombolas também estão respaldadas nas obrigações impostas ao Estado brasileiro pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e pela Declaração e o Programa de Ação de Durban, adotados em 2001, durante a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.

 

Contudo, o que se vê é a mais completa omissão do Governo Federal no combate aos efeitos da pandemia nos quilombos. Não há diálogo com as comunidades, não há planejamento e nem mesmo ações minimamente significativas em benefício das comunidades. Nem mesmo as políticas públicas aplicadas à população em geral, como o auxílio emergencial, chegaram às comunidades quilombolas em paridade com o restante da população. Dificuldades de acesso a internet, a smartfones e linha telefônica, entre outras, inviabilizaram a milhares de quilombolas o acesso aos seiscentos reais mensais.

 

A grave situação por que passam as comunidades quilombolas no contexto da pandemia não decorre apenas das omissões do Estado no enfrentamento à COVID-19. Por mais de três séculos e meio o Estado português e o Estado brasileiro enriqueceram explorando a escravidão. Abolida formalmente a escravidão em 1888, foram mais cem anos para que, juridicamente, o Estado brasileiro reconhecesse a existência das comunidades quilombolas e lhes conferisse direitos específicos, como o de acesso à terra.

Negligência estrutural

Mas passados 32 anos da promulgação da Constituição Federal o Estado ainda não titulou os territórios quilombolas como obriga o art. 68 do ADCT. A seguir o atual ritmo de atuação o INCRA demoraria mais de mil anos para titular os mais de seis mil quilombos existentes no país.

 

A ausência de titulação dos territórios talvez seja, hoje, uma das principais condicionantes da situação de vulnerabilidade das comunidades à COVID-19. Sem acesso ao território é extremamente difícil adotar medidas de combate e prevenção aos efeitos da pandemia, como o isolamento social comunitário. Por outro lado, comunidades tituladas têm melhores condições de enfrentar a pandemia, com menor dependência da ação de Estado, ao passo em que auxiliam outras comunidades, como fizeram quilombolas do Vale do Ribeira doando mais  de 50 toneladas de alimentos. 

 

Recursos para as ações não faltam, pois ainda que sejam finitos o Brasil está entre as dez maiores economias do mundo. E não faltaram recursos para o recente aumento da remuneração dos militares, para o cartão corporativo do presidente e nem para produzir milhares de comprimidos de cloroquina que estão, hoje, sem destinação.

 

Mas, nós quilombolas continuamos a lutar por nossos direitos e esperamos que o Supremo Tribunal Federal exerça seu papel de guardião da Constituição Federal e imponha à União a obrigação de adotar medidas de combate aos efeitos da COVID-19 nas nossas comunidades.

 

Nossas ancestralidades nos inspiram, e fazemos nossas as palavras autobiográficas de Baquaqua: “Esse Capitão fez uma enorme quantidade de coisas cruéis que seria horrível relatar(…). Mas está se aproximando o dia em que seu poder será investido em outro e de sua intendência terá que prestar contas. E, aí, que explicação poderia ele dar para crimes impiedosos cometidos sobre os corpos contorcidos dos pobres miseráveis que estavam sob seu jugo, quando seu reinado cessar e a grande prestação de contas chegar, o que ele dirá? Qual será seu destino?”

 

A ADPF 742 foi protocolada no Supremo Tribunal Federal  (STF) em 09 de Setembro, passados 90 dias ainda aguardamos o STF agir e cumprir com seu papel histórico. Não esperamos nada menos do que nossas vidas e nossos direitos valorizados e preservados.

Acesse ao folder da campanha #vidasquilombolasimportam (arquivo disponível em PDF)

Com desenhos de Marcelo D´SaleteRealização: Conaq, Instituto Ibirapitanga e 342 Amazônia  

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