26 jul

Os quilombolas que o Brasil insiste em ignorar

Texto publicado no O Globo

Somos vítimas de uma política de invisibilidade por parte da sociedade brasileira, intensificada no atual governo

Imagem de capa: Quilombo em Grumari, no Rio. Foto:  Márcia Foletto

Por Selma dos Santos Dealdina

Aquilombar é acolher. Muito mais que esconderijos, os quilombos eram abrigos. Não protegiam apenas quem fugia da escravidão, mas de qualquer forma de opressão. Um relatório de 2012, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, calculou que havia cerca de 214 mil famílias e 1,17 milhão de quilombolas no Brasil, estimativa reconhecidamente modesta, tendo em vista que a demografia quilombola só será conhecida a partir do resultado do Censo 2022. Nós, negros, somos a imensa maioria nos quilombos, 92,1%, segundo a mesma pesquisa — não é para menos, já que sempre fomos os mais oprimidos. Mas há quilombolas de todas as cores e credos. Aquilombar o Brasil, portanto, significa tornar o país a casa de todos. É lutar por justiça e igualdade.

Essa é a principal razão de lançarmos o Quilombo nos Parlamentos, uma iniciativa da Coalizão Negra por Direitos, que reúne 250 movimentos sociais e associações — como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que representa cerca de 6 mil quilombos. Queremos formar no Congresso uma bancada que olhe para quem mais precisa, além de garantir nossos direitos constitucionais, que vêm sendo constantemente desrespeitados.

Em agosto, o IBGE começa a fazer o primeiro censo quilombola oficial, quando finalmente saberemos quantos realmente somos. Segundo os dados preliminares do instituto, existem 5.972 quilombos no Brasil, presentes em 1.674 municípios de 24 estados. Mas só 4% deles estão titulados. As negligências de sucessivos governos têm acentuado as desigualdades no acesso aos direitos e propiciado o desmonte de muitas políticas públicas — caso do atual governo. Ser negro no Brasil é como viver num filme de terror: 75% das pessoas assassinadas são negras, assim como oito em cada dez mortas pela polícia. Segundo o “Atlas da Violência 2020”, assassinatos de negros aumentaram 11,5% entre 2008 e 2018, enquanto os de não negros diminuíram 12,9% no mesmo período.

No Congresso, só 17,8% dos parlamentares são negros. Somos a maioria da população brasileira (56%), porém chamada de minoria; quilombolas são minoria mesmo, tratados como minoria das minorias. Segundo o presidente, somos pesados em arrobas, como animais, e não servimos nem para procriar. No momento, o Quilombo nos Parlamentos reúne cerca de cem pré-candidaturas às casas legislativas federal, estaduais e ao Senado.

Nós, quilombolas, também somos vítimas de uma política de invisibilidade por parte da sociedade brasileira, intensificada no atual governo. Tirando os indígenas, só há imigrantes neste país. Nossos ancestrais foram sequestrados e trazidos para cá, mas fizeram desta terra sua casa e a amam para além das riquezas materiais que ajudaram a produzir. O que seria do Brasil sem sua herança negra?

Temos uma cultura própria e o direito constitucional de conservá-la, pelos artigos 215 e 216 da Constituição. Nossos modos de vida salvaguardam as vegetações nativas dos biomas brasileiros. Nossas tradições ajudam a preservar a natureza, a medicina e a agricultura tradicionais e a biodiversidade. Mas há o desejo de minimizar nossa importância na construção deste país; não fomos/somos apenas corpo, força bruta, mas também inteligência, criatividade e alma. Aquilombar é preciso!

*Selma dos Santos Dealdina é secretária administrativa da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)

Link: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2022/07/os-quilombolas-que-o-brasil-insiste-em-ignorar.ghtml

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