Manifesto quilombola – Série especial Na raça e na cor

As contradições, amplas e profundas, que permearam o processo histórico de construção da sociedade brasileira denunciam, atualmente, o caráter estrutural das violações de direitos humanos cometidas contra as comunidades tradicionais. Oferecendo um pólo de resistência ao escravismo do passado, quilombolas do presente continuam na luta pela titulação e gestão de seus territórios, mas quem são os quilombolas de hoje? O que um quilombo representa em 2017? Os quilombos se configuram como comunidades negras rurais, mas não exclusivamente de pessoas negras, ou seja, um lugar de inter-relações culturais, étnicas e raciais e de resistência à opressão histórica sofrida.

A aprovação da Lei Áurea, há 129 anos, não elimina as violências às quais as pessoas escravizadas foram submetidas. Ela explicita a adequação do capitalismo em diferentes estágios e cenários de exploração que, com o tempo, se aprimora em termos estruturais. O racismo não se constitui enquanto condição transitória, e sim como constitutiva do desenvolvimento desse sistema que opera produzindo manifestações da dinâmica estrutural capitalista. Esse sistema relega às Américas uma estrutura periférica onde a opressão de negras e negros é parte do conjunto de ações que privilegia setores dominantes da economia em detrimento da efetivação dos direitos sociais conquistados. Ou seja, mesmo com a condição jurídica alterada, as pessoas negras no Brasil continuam segregadas a condições que provocam a situação de opressão, violência e profunda desigualdade social.

O racismo estrutural da sociedade brasileira desempenha um papel estratégico na  legitimação da dominação das pessoas negras no período que sucedeu a abolição formal e inconclusa da escravidão. Promovendo uma falsa condição de igualdade às negras e aos negros perante a população branca, a situação de igualdade formal aprofundou a visão de inferioridade natural e suprimiu a verdadeira história de luta de milhares de pessoas que, ao longo de séculos, resistem e organizam levantes em todo o país em busca de emancipação e liberdade. Presumir que uma formalidade seria capaz de acabar com ações que estruturaram a sociedade por quase 400 anos é, portanto, dar continuidade a uma experiência histórica onde o racismo do passado provoca a marginalização social do presente.

As comunidades quilombolas sofrem violações de direitos humanos porque estão historicamente submetidas a um processo de expropriação de seus territórios tradicionais que segue o mesmo roteiro de injustiça em função da pressão exercida por latifundiários e empresários ligados ao agronegócio. As diretrizes de ocupação e de conformação do território brasileiro transformam-se em espaços de negação de meios de produção material da vida social. A ausência de políticas estruturantes de democratização da terra, regida pelo contexto de opressão contra quilombolas, compõe um conjunto de ações de uma sociedade estruturalmente desigual e consequentemente marcada pelo racismo. Sob esse efeito, a atuação do Estado, aliado a instituições financeiras, perpetua a condição subalterna de determinados grupos sociais em um processo em que as formas de opressão não deixam de existir, mas vão se transformando. O que deve ser discutido como alternativa, neste sentido, não é a disputa desse sistema, mas sim a sua superação.

Neste cenário de violações, destaca-se a articulação das mulheres quilombolas do Oeste do Pará que, organizadas através da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), promovem uma série de atividades que visam fortalecer a luta de suas comunidades pelo reconhecimento e efetivação de seu direito ao território e uma vida sem violências. Das experiências dessas mulheres que avançam no debate sobre territorialidades e fortalecem os processos políticos de suas comunidades através da perspectiva do combate ao racismo e sexismo, nasce o projeto Na raça e na cor, nome do grupo de mulheres quilombolas de Santarém, organizados através da FOQS. Esta é uma série especial que apresentará em um período de dois meses um pouco da trajetória dessas comunidades, ilustrando a luta e resistência quilombola de todo o país frente a sistemática violação de direitos.

Ao reconhecer racismo e sexismo como aspectos estruturantes das relações sociais, as quilombolas incorporam ferramentas analíticas à luta acumulada ao longo da história de opressão marcada pela experiência colonial racista e sexista no Brasil. A consolidação de raça e gênero como elementos estruturais e estruturantes para os campos de debates em que se envolvem é fundamental para a construção de concepções de direitos humanos que não reproduzam opressões racistas e sexistas.

A série terá como fio condutor a mobilização das mulheres de Santarém, a partir das experiências do movimento quilombola da região narradas durante atividades do grupo de mulheres. Através de reportagens, artigos, entrevistas, depoimentos e materiais gráficos a série discutirá o modo de vida, a organização social, a cultural e política quilombola através da discussão sobre territorialidade. Para isso, a série se propõe a comunicar a partir de quatro eixos estratégicos: identidade, em que informações e conceitos importantes para compreensão do modo de vida e cultura quilombola e sua relação onipresente e definitiva com a terra serão apresentados; racismo, destacando a ofensiva do Estado contra o reconhecimento dos direitos quilombolas como mais uma manifestação estrutural de opressão; gênero, onde será evidenciada como a interconexão entre gênero e raça remete a mulher negra a um contexto de dupla opressão; e luta pela terra, em que a questão fundiária quilombola é pautada como um movimento de reparação por tudo o que foi negado às pessoas negras ao longo da história.

Consideramos que a iniciativa acontece em um momento importante para o país, quando direitos historicamente conquistados têm sido atacados em favor de interesses de setores econômicos, arranjo que culminou no golpe de Estado em 2016, e colocou em risco a democracia do país, viabilizando tentativas de desmonte de direitos. Para as comunidades quilombolas, além da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239 que julga o Decreto Federal 4887/03, que regulamenta a ação do Estado para a titulação dos territórios quilombolas, existe o agravamento da gradual paralisação das políticas de titulação. Segundo cálculos realizados antes do golpe de 2016,  seriam necessários mais de 970 anos para que o Estado brasileiro cumprisse com a determinação constitucional de titular todos os territórios quilombolas. A simples evidência de que o Estado brasileiro poderia levar quase mil anos para titular todos os territórios quilombola no Brasil é gravíssima prova do profundo racismo institucional que persiste em nossa sociedade.

As transferências da atribuição de titulação desses territórios de Ministérios para a Casa Civil, durante o governo de Michel Temer, têm por objetivo dificultar a aplicação do direito constitucional quilombola à terra. A posição do Governo Federal demonstra a latente expressão do racismo que permeia a história da sociedade brasileira. Enquanto o Governo diz ser necessário adotar cautela na questão da titulação das terras do povo negro, em outros temas de interesse do Executivo, como no caso das terceirizações de relações de trabalho, o presidente da República atua rapidamente para sancionar a lei, ainda que o tema dependa de julgamento Supremo. Frente a tantos desafios, a organização das comunidades quilombolas enfrentam essa ofensiva e levam sua pauta ao cenário internacional, através de denúncias articuladas pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e organizações parceiras.

Assim, Na raça e na cor pretende visibilizar a identidade étnica e de gênero, individual e coletiva, assim como as práticas contra-hegemônicas desenvolvidas pelas quilombolas através da recategorização da história de ocupação territorial de seus antepassados. Estabelecer e ampliar este debate com a sociedade brasileira requer o resgate acerca dos dispositivos de opressão e sujeição da escravidão, onde o deslocamento de corpos escravizados de seus territórios era essencial para o funcionamento do sistema. Os resquícios dessa política são facilmente encontrados na atualidade, quando quilombolas são oprimidos pelo racismo e têm a condição de escravidão vivida por seus antepassados ridicularizada, inclusive por representantes do Congresso Nacional.

Embora uma série não seja suficiente para eliminar as estruturas que historicamente violam as populações marginalizadas de norte a sul do Brasil, o propósito desta iniciativa é o enfrentamento a um projeto político que cria e alimenta dispositivos de desigualdade, ameaçando os direitos territoriais, econômicos, sociais e culturais das comunidades quilombolas. Projetando-se em direção ao debate público sobre o tema, Na raça e na cor pretende sistematizar elementos que possam contribuir para a luta emancipatória dos movimentos quilombolas na discussão acerca das políticas de democratização de terras e sua relação com o direitos das comunidades quilombolas no Brasil.

Viva a luta das comunidades quilombolas!

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Ilustração de Ana Luisa Dibiasi

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