Livro que retrata as comunidades quilombolas do RS é lançado na Expointer

Reprodução site Agricultura RS

A pesquisa é inédita no Brasil e registra a vida de 130 comunidades

O ancião Umberto da Rosa Farias tem conhecimento de ervas curativas e mora no Quilombo Emília de Moraes, em Cerrito – Foto: Fernando Dias/Seapi

Uma pesquisa realizada em 2022 está materializada no livro “Diagnóstico das comunidades quilombolas certificadas do Rio Grande do Sul”, lançado nesta quinta-feira (31/8) no estande do governo do Estado no Pavilhão Internacional da 46ª Expointer. O e-book de 128 páginas traz informações sobre as 130 comunidades quilombolas rurais e urbanas existentes no Estado, certificadas pela Fundação Cultural Palmares. A ideia é aprimorar as políticas públicas destinadas para essa população. O trabalho foi desenvolvido pelas secretarias da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi) e de Desenvolvimento Rural (SDR) e pela Emater/RS-Ascar.

Segundo a coordenadora do estudo, socióloga e pesquisadora da área de Desenvolvimento Rural do Departamento de Diagnóstico e Pesquisa Agropecuária (DDPA) da Seapi, Denise Reif Kroeff, a pesquisa é inédita no Estado e sem referência semelhante no Brasil, por ter sido feita em todas as comunidades certificadas e pelo amplo espectro de temas abordados. O objetivo foi elaborar o diagnóstico, caracterizando as comunidades quilombolas, mostrando suas condições de vida, identificando as principais fontes de renda e atividades produtivas e, ainda, seus bens culturais. “Costumo dizer que a pesquisa é semelhante a uma foto de drone, nem tão perto a ponto de conhecer com profundidade as famílias, mas nem tão longe a ponto de não ver particularidades das comunidades tradicionais, porém o suficiente para ter um conhecimento sobre o todo das comunidades”, comparou.

“As fotografias da publicação, feitas pelo fotógrafo da Seapi, Fernando Dias, têm o papel não só de ilustrar os dados, mas também de fazer um registro dos bens culturais, das paisagens dos quilombos. Inclusive, as imagens feitas por técnicos da Emater, que inicialmente eram apenas para o acervo da pesquisa, foram utilizadas no livro, pois dão visibilidade ao modo de vida quilombola”, destacou Denise.

O engenheiro agrônomo e assessor técnico do Departamento de Desenvolvimento Agrário, Pescadores, Indígenas e Quilombolas da SDR, Luiz Fernando Fleck, que participou do estudo, disse que foi um trabalho bem significativo. “Ele nos forneceu muitos elementos para traçar as políticas públicas, especialmente na área do desenvolvimento social”.

O quilombola da Comunidade Armada, Quinto Distrito de Canguçu, vice-presidente da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio Grande do Sul e coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), José Alex Mendes, disse que a realização do diagnóstico era uma demanda das comunidades. “Com os dados que foram levantados, podemos discutir as necessidades de políticas públicas para as comunidades quilombolas”, acredita. “Essa parceria com a Seapi, a SDR e a Emater, de conseguirem um diagnóstico com diversas lideranças e nos trazer, é muito rica e vai servir para a elaboração de proposta que vai ajudar as comunidades quilombolas”, falou.

Casal Tereza e José Alex Mendes e 1º vereador quilombola de Mostardas, Jorge Amaro – Foto: Rodrigo Martins/Ascom Seapi

“Esperamos que, com essa pesquisa, os governantes possam de fato colocar em prática as políticas públicas que atendam às nossas necessidades, respeitando a certificação da Fundação Cultural Palmares e nossos marcos legais”, afirmou José Alex. Sua esposa, Tereza Silva, membro do Conaq Mulher, agradeceu o trabalho realizado pelos pesquisadores. “Gratidão. Com esse livro podemos dizer que existimos. E precisamos resistir para existir”, disse com emoção.

O vereador de Mostardas, Jorge Amaro, contou com orgulho que foi o primeiro vereador quilombola a ser eleito no município, em 2020. “Meus tataravós foram escravos. Não podemos nunca esquecer dos que tombaram”.

A pesquisa

Livro “Diagnóstico das comunidades quilombolas certificadas do Rio Grande do Sul” – Foto: Rodrigo Martins/Ascom Seapi

Nos meses de março e abril de 2022 foi feita a pesquisa de campo, estruturada e coordenada por uma equipe multidisciplinar de 10 pesquisadores das áreas de desenvolvimento rural, veterinária, agronomia e captação de imagens. A coleta de dados foi realizada pelos técnicos da Emater em 67 municípios com ocorrência de comunidades quilombolas.

“Nada sobre nós, sem nós“ fez parte do método da pesquisa. “Todos os dados foram fornecidos pelos próprios quilombolas, sendo assim, foi respeitada a demanda dos representantes dos quilombolas e do movimento negro, de que eles fossem ouvidos quando se pesquisasse sobre eles”, esclareceu Denise. “Ao todo, estavam presentes nas 130 reuniões para responde ao questionário 775 quilombolas”.

“A história das comunidades quilombolas é marcada pela diáspora africana, tempo em que o povo negro era forçado ao ‘esquecimento’ dos seus laços sociais, familiares e sua cultura. Sendo assim, é importante para a sociedade gaúcha reconhecer e dar visibilidade às expressões e à identidade dessas comunidades”, afirmou a nutricionista da Emater/RS-Ascar, Regina Miranda, responsável pela área quilombola da instituição.

“É necessário que a sociedade gaúcha tenha as comunidades quilombolas como constitutivas do mosaico civilizatório desse Estado. Espera-se que o diagnóstico contribua para ampliar o reconhecimento, o fortalecimento e a valorização das comunidades quilombolas do RS, ao tempo em que seja um instrumento de consulta para a formulação de políticas públicas e garantia de direitos a esse povo tradicional”, completou Regina.

Principais resultados

As 130 comunidades quilombolas certificadas estão em 67 municípios, têm concentração territorial nas regiões Sudeste Rio-grandense e Metropolitana de Porto Alegre (64%), são na sua maioria rurais (87%) e estão no território há mais de 101 anos (62%). As comunidades se caracterizam ainda por um certo isolamento territorial, já que 37% estão há mais de 30 quilômetros da sede do município, o acesso é por meio de vias de chão batido em 66% das comunidades e 41% delas não têm transporte coletivo próximo.

Comunidade quilombola em Mostardas

Quanto à renda e produção agropecuária, os respondentes das comunidades estimaram que as fontes de rendas mais frequentes das famílias de suas comunidades foram aposentadoria, 84%; programa social (Bolsa Família, BPC, entre outros), 80%; diária de serviço agrícola, 70%; e agricultura, 58%.

Em todos os quilombos rurais há produção agropecuária. Quanto à produção vegetal, os produtos cultivados pelo maior número de famílias são frutas, hortaliças, batata-doce, milho, feijão, mandioca e cebola, configurando-se uma produção diversificada e voltada principalmente para o autoconsumo. “Percebe-se que essa produção gera excedentes, pois em torno de 20 a 40% das famílias comercializam sua produção”, salientou Denise.

No que se refere à produção animal, as atividades que envolvem o maior número de famílias são aves de corte e produção de ovos, suínos e gado de corte. Destaque em vendas é a produção de lã de ovinos, apicultura e a criação de bovinos de corte.

Ainda mais da metade das comunidades quilombolas produz artesanato, sendo as atividades mais comuns, crochê e tricô e artesanato em tecido. A produção agrícola quilombola abrange uma ampla gama de produtos, contribuindo com a diversidade produtiva do Rio Grande do Sul.

Em relação aos bens culturais, mais da metade das comunidades rurais têm preservadas sementes crioulas e/ou ramas de vegetais. Destaca-se ampla diversidade de variedades, algumas muito específicas e peculiares, de feijões (feijões roxo, miúdo preto e vermelho, gana, marrom, mourinho, feijão-da-praia, feijão-mamoninho, feijão-miúdo, feijão-sopinha, entre outras), ervilha e fava e, também, milhos (sobretudo milho branco ou catete). São, ainda, mantidas pelas comunidades, sementes de cucurbitáceas (abóboras, morangas, melancias e melões), ramas de batatas-doce (branca e roxa, batata-abóbora), hortaliças, amendoim, alho crioulo, cebolas, goiaba branca, aipins e variedades para pastagem, como o milho-pedra.

Quanto aos alimentos tradicionais, destacam-se os à base de milho, como canjica, quirera, sorda, angu, cuscuz, pamonha, pão de milho, broa, “farinha de cachorro”; e alimentos à base de mandioca, como beiju, jacuba, farofa e paçoca.

No âmbito dos saberes tradicionais, destacam-se as benzeduras, especialmente “benzer o tempo”, benzedura de tormentas, cruz de sal, machado cravado no chão para espantar temporal. Também há um repertório amplo de histórias assombradas e fantásticas, “panelas de ouro”, boitatá, bruxas, noivas e mulheres de branco foram as mais citadas.

“A pesquisa identificou várias ‘mazelas’, mas também muitas estratégias de sobrevivência inteligentes e eficazes. Um sistema tradicional diversificado de cultivo da terra, a guarda do patrimônio genético das sementes, o conhecimento de ervas medicinais, a cultura própria recheada de celebrações religiosas e também de resistência política e de apoio à autoestima mostram que essas comunidades se definem mais pela resiliência do que por suas dores”, enfatizou Denise.

A socióloga contou que estão sendo preparados outros estudos sobre os quilombolas, como o detalhamento de dados regionais e o uso de instrumento estatístico para a formação de grupos de quilombos com características semelhantes para melhor focalizar as políticas públicas.

Estiveram presentes à solenidade de lançamento do livro o secretário de Desenvolvimento Rural, Ronaldo Santini; o secretário adjunto da SDR, Lindomar Moraes; o diretor-geral adjunto da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação, Clair Kuhn; a presidente da Emater/RS-Ascar, Mara Helena Saafeld; o superintendente do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) no Rio Grande do Sul, Milton Bernardes; o diretor do Departamento de Desenvolvimento Agrário, Pesqueiro, Aquícola, Indígenas e Quilombolas, Maurício Neuhaus, entre outros. No final, os autores da publicação foram chamados para uma foto.

Os autores Rodrigo Martins (esq), Larissa Bueno, Bruna Roldan, Luiz Fleck, Fernando Dias, Regina Miranda e Denise Kroeff – Foto: Vitória Reis/SDR

 

A publicação completa pode ser acessada no link: file:///C:/Users/Expointer/Downloads/25102731-livro-quilombolas-final-ebook-02-1.pdf

Os autores Rodrigo Martins (esq), Larissa Bueno, Bruna Roldan, Luiz Fleck, Fernando Dias, Regina Miranda e Denise Kroeff – Foto: Vitória Reis/SDR

Texto: Darlene Silveira

Edição: Maria Alice Lussani

 

 

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