16 jan

Inspirado em relatos de parteira de comunidade quilombola, filme sobre Urucuia concorre a prêmio em festival de cinema

Relatos de Dona Joana, descendente de negros e índios, inspirou o curta de 15 minutos produzido por Marcello Sannyos; urucuiano foi contemplado em edital de inclusão audiovisual para moradores de pequenas cidades do Brasil, que financiou filme.

Por Juliana Gorayeb, G1 Grande Minas

 


Filme conta história de uma comunidade quilombola de Urucuia através de relatos de uma parteira — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo PessoalFilme conta história de uma comunidade quilombola de Urucuia através de relatos de uma parteira — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal

Filme conta história de uma comunidade quilombola de Urucuia através de relatos de uma parteira — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal

A história do sertão através de um relato de amor e luta virou filme no Norte de Minas. As crenças e dificuldades de uma comunidade de raiz negra e indígena da zona rural de Urucuia foram capturadas por lentes cinematográficas e vão alçar voos. “Baixa Funda, o Destino de um Povo” concorre no próximo fim de semana (nos dias 19 e 20) a premiações em um dos mais conhecidos festivais audiovisuais do Brasil, a Mostra de Cinema de Tiradentes.

O filme escrito e dirigido por Marcello Sannyos, natural de Urucuia, tem como personagem principal a Dona Joana Martiliana, uma idosa de 68 anos. Negra, descendente de índios e escravos, a senhora de estatura baixa e voz rouca narra a história do povoado de Baixa Funda através das memórias que guarda da avó. A resistência de uma mulher parteira, benzedeira, trabalhadora rural e quilombola traz elementos que revivem as memórias da escravidão no Norte de Minas.

Os 11 filhos de Dona Joana, as casas de pau a pique e o cultivo da terra no meio de um povoado sertanejo em que pouco chove compõem o cenário de “Baixa Funda, o Destino de um Povo”. Para Marcelo Sannyos, o registro envolve mais do que a própria arte, mas se torna histórico.

Vida humilde de comunidade rural virou cenário para o filme produzido em Urucuia — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo PessoalVida humilde de comunidade rural virou cenário para o filme produzido em Urucuia — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal

Vida humilde de comunidade rural virou cenário para o filme produzido em Urucuia — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal

“É uma senhorinha aposentada, humilde, resistente, e o curta vem para mostrar a força da mulher da roça, do sertão, negra. Por ela ser analfabeta, ela tem uma ciência própria. Foi parteira, benzedeira, e repassa as tradições de uma geração inteira às filhas. Domingas, por exemplo, aprende vivência da dona Joana. Hoje ela cuida da horta, dos remédios. Há ainda a religiosidade forte, que nada tem de matriz africana. Ela é devota da Santa Luzia, com altar dentro de casa e reúne filhos para rezar”, descreve.

É o enredo sertanejo que concorre ao prêmio de melhor curta por júri popular em Tiradentes, no centro-oeste de Minas Gerais. Além da possibilidade de ser premiado, o filme vai ser exibido no domingo (20) às 16h na categoria cena regional. “Só de passar em um dos maiores festivais do Brasil, o mais importante de Minas Gerais, já é uma honra muito grande, principalmente concorrendo a júri popular aberto”, comemora.

Produção do curta

Para contar a história de Urucuia através de “Baixa Funda, o Destino de um Povo”, Marcello Sannyos, que é artista visual, se inscreveu para um projeto de formação audiovisual voltado para moradores de cidades de até 20 mil habitantes. O “Revelando Brasis” selecionou histórias e levou os autores para o Rio de Janeiro, para oficinas de cinema no Canal Futura, onde transformaram as ideias em produtos cinematográficos. Marcello passou dois meses no estado carioca e retornou para o Norte de Minas com uma equipe de gravação.

Equipe passou dias em Baixa Funda para capturar imagens e conhecer realidade do povo quilombola — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo PessoalEquipe passou dias em Baixa Funda para capturar imagens e conhecer realidade do povo quilombola — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal

Equipe passou dias em Baixa Funda para capturar imagens e conhecer realidade do povo quilombola — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal

Em Minas Gerais, apenas os municípios de Urucuia e Barroso participaram do projeto em 2018. A inclusão proporcionou que a história do Marcello saísse do papel. “Já existia a ideia, mas não tinha recurso. Eu conhecia a Dona Joana e a história dela desde que participei de um projeto de assistência social, e ela me contou um pouco de tudo. Na hora eu disse que a vida dela dava um filme. Quando vi a chance, escrevi a sinopse e mandei. Fui selecionado com muita alegria. Cheguei a ser muito criticado na cidade, porque disseram que eu devia contar histórias de famílias importantes, não de uma comunidade tão humilde”, comenta.

A comunidade de Baixa Funda fica a aproximadamente 20 minutos, de estrada de terra, do município de Urucuia. Sannyos conta que enfrentou dificuldades para realizar o projeto.

“No interior, tudo que se faz é na raça. Então encontramos muito desafios, porque a comunidade sofre preconceito, com um nível de alcoolismo muito grande. São muito tímidos, desconfiados, e percebemos que muitas coisas tradicionais vêm se perdendo, como a religiosidade africana. Hoje eles são cristãos. Muitas histórias a dona Joana tem relatos do que a geração da avó dela viveu”, diz.

Filme Baixa Funda traz cenas de escravidão dando vida às memórias de Dona Joana
G1 Inter TV MG

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Veja o trailer: Filme traz cenas de escravidão dando vida às memórias de Dona Joana

Veja o trailer: Filme traz cenas de escravidão dando vida às memórias de Dona Joana

Filme pronto

Depois da captura das imagens, Marcello retornou ao Rio de Janeiro para participar da edição e finalização. Foram pelo menos quatro meses gastos na produção do curta-metragem (veja o trailer acima). De volta à cidade de origem, o filme foi lançado pelo próprio projeto “Revelando Brasis”. Pelo menos duas mil pessoas compareceram na exibição, na praça principal da cidade. A emoção dos moradores comoveu o próprio diretor.

Cerca de 2 mil pessoas se reuniram em uma praça de Urucuia para assistir ao filme junto ao Marcello e Dona Joana — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo PessoalCerca de 2 mil pessoas se reuniram em uma praça de Urucuia para assistir ao filme junto ao Marcello e Dona Joana — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal

Cerca de 2 mil pessoas se reuniram em uma praça de Urucuia para assistir ao filme junto ao Marcello e Dona Joana — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal

“A comunidade veio toda assistir de ônibus. Ver a emoção daquele povo tímido, vergonhoso, foi especial. Reservamos cadeiras para eles e todos se reuniram. A repercussão foi maravilhosa, todo mundo se emocionou”, diz.

O “Baixa Funda” participou ainda de debates em escolas da região que envolvem consciência negra e o povo sertanejo em cidades diferentes. O filme vai ser disponibilizado em uma plataforma de vídeos online após a Mostra de Cinema de Tiradentes. Mais informações sobre o “Revelando Brasis” podem ser consultadas no site do projeto.

*Matéria original publicada no site O Globo, em 15/01/2019.

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