Filme conta história de uma comunidade quilombola de Urucuia através de relatos de uma parteira — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal
A história do sertão através de um relato de amor e luta virou filme no Norte de Minas. As crenças e dificuldades de uma comunidade de raiz negra e indígena da zona rural de Urucuia foram capturadas por lentes cinematográficas e vão alçar voos. “Baixa Funda, o Destino de um Povo” concorre no próximo fim de semana (nos dias 19 e 20) a premiações em um dos mais conhecidos festivais audiovisuais do Brasil, a Mostra de Cinema de Tiradentes.
O filme escrito e dirigido por Marcello Sannyos, natural de Urucuia, tem como personagem principal a Dona Joana Martiliana, uma idosa de 68 anos. Negra, descendente de índios e escravos, a senhora de estatura baixa e voz rouca narra a história do povoado de Baixa Funda através das memórias que guarda da avó. A resistência de uma mulher parteira, benzedeira, trabalhadora rural e quilombola traz elementos que revivem as memórias da escravidão no Norte de Minas.
Os 11 filhos de Dona Joana, as casas de pau a pique e o cultivo da terra no meio de um povoado sertanejo em que pouco chove compõem o cenário de “Baixa Funda, o Destino de um Povo”. Para Marcelo Sannyos, o registro envolve mais do que a própria arte, mas se torna histórico.
Vida humilde de comunidade rural virou cenário para o filme produzido em Urucuia — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal
“É uma senhorinha aposentada, humilde, resistente, e o curta vem para mostrar a força da mulher da roça, do sertão, negra. Por ela ser analfabeta, ela tem uma ciência própria. Foi parteira, benzedeira, e repassa as tradições de uma geração inteira às filhas. Domingas, por exemplo, aprende vivência da dona Joana. Hoje ela cuida da horta, dos remédios. Há ainda a religiosidade forte, que nada tem de matriz africana. Ela é devota da Santa Luzia, com altar dentro de casa e reúne filhos para rezar”, descreve.
É o enredo sertanejo que concorre ao prêmio de melhor curta por júri popular em Tiradentes, no centro-oeste de Minas Gerais. Além da possibilidade de ser premiado, o filme vai ser exibido no domingo (20) às 16h na categoria cena regional. “Só de passar em um dos maiores festivais do Brasil, o mais importante de Minas Gerais, já é uma honra muito grande, principalmente concorrendo a júri popular aberto”, comemora.
Produção do curta
Para contar a história de Urucuia através de “Baixa Funda, o Destino de um Povo”, Marcello Sannyos, que é artista visual, se inscreveu para um projeto de formação audiovisual voltado para moradores de cidades de até 20 mil habitantes. O “Revelando Brasis” selecionou histórias e levou os autores para o Rio de Janeiro, para oficinas de cinema no Canal Futura, onde transformaram as ideias em produtos cinematográficos. Marcello passou dois meses no estado carioca e retornou para o Norte de Minas com uma equipe de gravação.
Equipe passou dias em Baixa Funda para capturar imagens e conhecer realidade do povo quilombola — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal
Em Minas Gerais, apenas os municípios de Urucuia e Barroso participaram do projeto em 2018. A inclusão proporcionou que a história do Marcello saísse do papel. “Já existia a ideia, mas não tinha recurso. Eu conhecia a Dona Joana e a história dela desde que participei de um projeto de assistência social, e ela me contou um pouco de tudo. Na hora eu disse que a vida dela dava um filme. Quando vi a chance, escrevi a sinopse e mandei. Fui selecionado com muita alegria. Cheguei a ser muito criticado na cidade, porque disseram que eu devia contar histórias de famílias importantes, não de uma comunidade tão humilde”, comenta.
A comunidade de Baixa Funda fica a aproximadamente 20 minutos, de estrada de terra, do município de Urucuia. Sannyos conta que enfrentou dificuldades para realizar o projeto.
“No interior, tudo que se faz é na raça. Então encontramos muito desafios, porque a comunidade sofre preconceito, com um nível de alcoolismo muito grande. São muito tímidos, desconfiados, e percebemos que muitas coisas tradicionais vêm se perdendo, como a religiosidade africana. Hoje eles são cristãos. Muitas histórias a dona Joana tem relatos do que a geração da avó dela viveu”, diz.

Veja o trailer: Filme traz cenas de escravidão dando vida às memórias de Dona Joana
Filme pronto
Depois da captura das imagens, Marcello retornou ao Rio de Janeiro para participar da edição e finalização. Foram pelo menos quatro meses gastos na produção do curta-metragem (veja o trailer acima). De volta à cidade de origem, o filme foi lançado pelo próprio projeto “Revelando Brasis”. Pelo menos duas mil pessoas compareceram na exibição, na praça principal da cidade. A emoção dos moradores comoveu o próprio diretor.
Cerca de 2 mil pessoas se reuniram em uma praça de Urucuia para assistir ao filme junto ao Marcello e Dona Joana — Foto: Ratão Diniz/ Arquivo Pessoal
“A comunidade veio toda assistir de ônibus. Ver a emoção daquele povo tímido, vergonhoso, foi especial. Reservamos cadeiras para eles e todos se reuniram. A repercussão foi maravilhosa, todo mundo se emocionou”, diz.
O “Baixa Funda” participou ainda de debates em escolas da região que envolvem consciência negra e o povo sertanejo em cidades diferentes. O filme vai ser disponibilizado em uma plataforma de vídeos online após a Mostra de Cinema de Tiradentes. Mais informações sobre o “Revelando Brasis” podem ser consultadas no site do projeto.
*Matéria original publicada no site O Globo, em 15/01/2019.