22 out

Eu, mulher quilombola, e a reinvenção da resistência

Uma jovem da comunidade negra encontrou na História e no Direito as intersecções fundamentais para construir sua trajetória de resistência e atuação social e política. Vem com a gente conhecer mais sobre mais uma potência brasileira!

Por Isabela da Cruz*, Jovem Transformadora pela Democracia

Descendente de uma comunidade negra, rural, quilombola do interior do Paraná, fui inventar de nascer lá no Mato Grosso, em uma metrópole — na cidade de Cuiabá, mais especificamente, onde vivi até os 9 anos de idade. Com a retomada da luta pela terra de nossos ancestrais, meu pai e minha mãe decidiram voltar. Ele, homem negro quilombola. Ela, mulher branca descendente de indígenas Kaingang. Ouviram o chamado de volta ao frio, ao sul, às terras dos e das ancestrais.

É aí que sinto que minha história enquanto ativista começa.

Na terra das Araucárias, da cerração fria pela manhã, da geada, foi que entendi o que é ser gente. Foi no contato com a terra — aquela que suja a roupa — e com a Terra — aquela que acolhe o povo –, que entendi o que é comunidade, o que é Território.

O ativismo começou com a escuta. Com a história contada pelos mais velhos, homens e mulheres que tinham na boca uma palavra forte, altiva, consciente, e que afirmavam com orgulho o pertencimento a este grupo específico: “o povo do Fundão”, o povo da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha, localizada na região de Guarapuava-Reserva do Iguaçu, no Paraná.

No princípio, parecia mais uma lenda, um sonho distante contado pelos mais velhos, que estavam “caducando já” e insistiam em afirmar que eram donos e donas de alqueires e alqueires de terras lá pra região do Pinhão (outro município do Paraná). Mas para mim, criança, histórias eram alimento pra imaginação. E que delícia! Que alimento saboroso! Na beira do fogo, na roda de conversa dos adultos, espiando as tias mais velhas conversarem entre uma reza e outra da Recomenda das Almas…

Quando estas pessoas falavam do Fundão, era como se seus corpos brilhassem, seus olhos se enchessem de vida. Seus sorrisos vinham à tona entre gargalhadas e sinais secretos, que só quem prestasse muita atenção podia perceber. Ouvir as histórias entre as práticas do dia a dia me faria entender, mais tarde, o que é luta, o que é movimento social, o que é ser quilombola.

Da escuta passei à participação em reuniões, encontros, cursos e atividades que envolviam a comunidade. Conforme ia ficando mais velha, nas festas e rezas realizadas na comunidade, em viagens onde encontrávamos outras pessoas com histórias e jeitos de ser (falar, cumprimentar, vestir, comer, conversar etc) muito parecidos, fui percebendo que havia outros com histórias muito parecidas com a nossa. Homens e mulheres negras da roça, que lutavam pra ter reconhecidos os direitos sobre suas terras. Terras passadas de geração em geração, cultivadas pelos seus mais velhos, do Sul ao Norte do país. O olhar se expandiu.

Na comunidade, criamos um grupo de teatro e danças afro-brasileiras, composto por crianças e adolescentes animados em se afirmar negros e negras em uma cidade/estado que se orgulha em se dizer “europeu”. No grupo Kundun Balê, descobrimos a alegria de sermos vistos como artistas, educadores e educadoras, e de conhecer o Paraná por meio da arte e da valorização da nossa história.

Com o término do Ensino Médio, ingressei na faculdade de História. O encontro com outras formas de ler o mundo me fizeram esperançar. A educação, que já era uma paixão, passou a ser a bandeira de luta para que o valor da população negra e as injustiças cometidas contra os escravizados no país fossem reconhecidos. Mergulhando na História e em suas narrativas, o mundo fez sentido. E a compreensão aumentou.

Já formada, ajudei a construir o I Encontro de Comunidades Quilombolas do Paraná (o primeiro autorrealizado por quilombolas, em parceria com a Secretaria Estadual de Educação), e, a pedido das lideranças das outras comunidades, assumi a missão de secretariar os mais velhos e atuar como comissão de juventude e cultura no estado. Tive a alegria e a honra de participar da Rede de Mulheres Negras do Paraná, atuando e aprendendo como se faz controle social em prol das políticas públicas para a população negra. Participei de atividades nacionais e internacionais, enquanto jovem ativista, negra, quilombola e feminista, pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas e a Articulação Nacional de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras.

Aos poucos, me deparei com as dificuldades de se fazer política nacional em meio à ampla diversidade que enriquece e, ao mesmo tempo, desafia a participação social. Controvérsias, belezas, lutas, simplicidades e sofisticações inimagináveis. O Brasil pulsa quando se encontra em conferências nacionais, em reuniões governamentais, em espaços de controle social e gestões administrativas. Mas o meu coração pulsa mesmo é quando reencontro a população quilombola, os povos e comunidades tradicionais dos campos, das águas e das florestas. Pra mim, é aqui que a vida (e a política) fazem senti(n)do.

Em 2015, ingressei no curso de Direito na Universidade Federal do Paraná, pelo Programa Nacional de Educação e Reforma Agrária. Pude entender e me reconciliar com o Direito, esse que durante tantos anos nos foi negado. E a luta se ampliou.

Hoje, recém-formada, mestranda em Sustentabilidade junto a Povos e Comunidades Tradicionais pela Universidade de Brasília — UnB, gestando e me preparando para trazer ao mundo um novo ser humano, me vejo reflexiva sobre as lutas que escolhi travar e as que vêm pela frente. Diante de uma pandemia, questiono os rumos que o futuro nos reserva. Diante de um Brasil administrado politicamente por forças conservadoras que negam as conquistas sociais das últimas décadas e aos poucos desmantelam os direitos conquistados arduamente, vejo mais do que nunca, a necessidade de nos autoavaliarmos.

A minha atuação política tem sido em grande parte de forma online, nas redes sociais, e no diálogo próximo à população quilombola da minha região. Mas é preciso lembrar que a maioria das comunidades negras rurais ainda não possui acesso a essas e outras ferramentas de comunicação de forma satisfatória. Ainda precisamos nos reinventar, nos ressignificar.

Leia o texto completo em: Agenciajovem.org

 

Isabela da Cruz é ativista pela promoção dos direitos das populações quilombolas, possui destacada atuação junto à juventude quilombola e ao movimento de mulheres negras, através da FECOQUI –  Federação Estadual de Comunidades Quilombolas do Paraná. É historiadora, Bacharel em Direito e Mestranda em Desenvolvimento Sustentável.

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