No dia Internacional da Mulher fomos a campo para buscar conteúdo capaz de provocar uma reflexão sobre a mulher negra quilombola e a produção do conhecimento no mundo acadêmico, envolvendo o universo das culturas populares, ancestrais, de preservação de tradições, de quem precisa estar dentro na comunidade de origem (centro da família), movimentos, estudos, e que ainda precisa lutar contra a marginalização de uma sociedade, de acordo com estudos, ainda patriarcal, machista e racista nos espaços de formação.

Valeria Porto, mulher negra quilombola, formada em Engenharia Agronômica, com especialização em Inovação Social (IFBA) e Educação Ambiental (UFBA), e atualmente mestranda em Sustentabilidade Junto aos Povos e Terras Tradicionais, pela Universidade de Brasília (UNB), é uma dessas exceções que ocupam cadeiras, assinam pesquisas, reivindicam representatividade e repensam o papel do povo negro quilombola e, especialmente, o papel das mulheres negras quilombolas dentro da universidade.

Na sua comunidade, e na sua atuação política junto aos movimentos sociais a quase 12 anos, assim como na academia, Valéria Porto transparece a potência de quem sabe de onde vem, olha para o que a constitui e devolve para a sociedade a força e a importância da cultura quilombola. No Mestrado pela UNEB, se lançou a pesquisar sua própria cultura, a partir do seu local, sua ancestralidade e enfrenta diariamente as dificuldades para reconhecimento do saber tradicional como legítimo, vivo. O site Notícias da Lapa conversou com ela sobre a condição de ser mulher negra quilombola nesse mundo – os desafios e os caminhos para a construção do conhecimento vinculada ao seu contexto de origem.

A mulher negra quilombola, identidade e trajetória

Valéria Porto: Eu sou Veléria Porto, do Quilombo Pau D’ Arco Parateca (Malhada-Ba). Eu costumo me apresentar com nome e sobrenome, porque eu aprendi com Lélia Gonzalez e Vilma Reis, que preta e preto tem que ter nome e sobrenome, se não o racismo coloca o nome que ele quiser.

Falar um pouco da minha pessoa enquanto mulher negra, quilombola e  rural, é voltar um pouco o pensamento do meu projeto de vida, na minha trajetividade. Aparentemente parece uma história de sucesso, de alguém que venceu na vida, mais que ainda tem um caminho muito longo a ser percorrido, e esse caminho percorrido até aqui, foi e está sendo muito difícil.

Desafios dentro do espaço acadêmico e a luta pela autoafirmação do sujeito  

Valéria Porto: Primeiro que sair do quilombo em busca desse espaço na academia é um processo árduo e de rupturas. A gente enfrenta inúmeros entraves, e são todos os tipos: o máximo, o racismo, o fato de tá longe de casa, o desconforto de não ter ali o aconchego familiar.

E quando a gente chega nessa estrutura, em algo que não foi pensando para nós, as vezes não tem pessoas que falam de fato pensando em nós, que não entende o contexto de vida pelo qual a gente vem. Eu hoje já me sinto mais confortável em alguns espaços, mas isso foi uma coisa que eu busquei trabalhar no dia a dia, do ponto de vista, de que isso é preciso para poder representar bem o meu povo. Fazer uma fala orgânica do lugar de onde eu venho.

É preciso desconstruir alguns discursos dentro da academia

Valéria Porto: Existe uma lacuna na sociedade brasileira, que é o lugar de fala da mulher negra quilombola que vem do rural, e que a gente precisa passar por esses processos de formação, pra poder de fato concorrer e pleitear os espaços de poder. Então, eu ainda estou nessa caminhada em busca desse lugar; nós na verdade, mulheres negras, quilombolas. Esse espaço acadêmico, é um espaço que precisamos de certa forma passar por um processo de transgressão. A gente transgride, porque é preciso que a gente desconstrua e construa concepções, que foram impostas por uma elite, uma elite majoritariamente branca. Então, ainda enxergam algumas falas nossas, das mulheres negras, sobretudo as mulheres negras quilombolas, como mimimi, como vitimismo. E não é isso, a gente faz a fala orgânica, de um povo que existiu, resistiu e resiste até hoje, a uma série de questões impostas, para nos destruir, para nos diminuir. Pensar o nosso papel hoje dentro da academia, e dizer que a gene tem muito a contribuir em todas as áreas, principalmente tratando de povos e terras tradicionais. Porque a gente leva esse conhecimento dos nossos mais velhos, das nossas mais velhas.

Existe um conhecimento tradicional dentro da academia que precisa ser reconhecido

Valéria Porto: A gente leva um conhecimento que a base, sim, da ciência, e que a ciência as vezes ela se apropria de certos conhecimentos nossos, e não dão os créditos. Isso é visto nitidamente, como exemplo, em relação as ervas medicinais. A indústria farmacêutica, ela se apropria desses conhecimentos dessas ervas medicinais, e ela não dão, não dizem de onde veio. Quais são as comunidades, e quem é que historicamente produziu e reproduziu isso em nossos estados. É difícil, tudo isso, mais é importante dizer que hoje, nós tivemos um avanço sim, nós queremos muitos mais, mais nós já estamos dentro da academia. Temos pouquíssimos, ou quase nenhum professor nesses espaços acadêmicos que sejam professores quilombolas. Temos professores negros, poucos, mais já temos. E dizer, que nós enquanto mulheres negras quilombolas, vivendo um momento histórico; e dizer que nós somos a base da pirâmide, nós somos a base, e se a gente se mexer, a estrutura toda se mexe, e nós estamos nos preparando para fazer uma revolução, não só no Brasil, mas no mundo.

Agradecimento as ancestrais

Valéria Porto: Quero agradecer as minhas ancestrais, que vieram antes de mim. Quero agradecer aquelas que estão hoje, que são minhas contemporâneas, mais que já vieram facilitando o processo para que eu chegasse, para continuar a luta. Parabenizar todas as mulheres guerreiras, que mantém os seus lares, que vão para o campo, para vários espaços, trabalhar e fazer valer também o nosso papel. Que buscam esse reconhecimento, enquanto ser humano, que contribui para o desenvolvimento social. Que busca salários justos, e reconhecimento acadêmico.

A Academia é importante para o fortalecimento da luta das Mulheres Quilombolas

Valéria Porto: Vejo a academia como espaço de empoderamento dessas lutas, nós estarmos enquanto mulheres negras dentro da academia, é uma forma de empoderar os nossos movimentos, e fazer com que a gente tenha argumentos qualificados, que a gente tenha trabalhos produzidos por nós mesmas para enfrentar o capital, e para enfrentar essa supremacia que está aí.

Por José Hélio SRTE/BA 5607

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