20 maio

Encruzilhadas no caminho

Conhecido por Nego Bispo dos Santos vive na comunidade Saco do Curtume, no Piauí, e é importante figura na interlocução entre grandes obras e comunidades quilombolas em todo o Brasil

Nego Bispo participa do Festival Canjerê, onde discute as políticas públicas e as possibilidades de parcerias entre quilombolas do país. Ele é autor de “Colonização, Quilombos: Modos e Significações” (2015).

Qual é a importância do Festival Canjerê para a questões quilombolas?

Eu avalio que todo espaço onde você pode expor diversidades culturais, sejam elas de que matriz for, é fundamental, é importante, fortalece. Além do Festival, entre outras coisas, estou vindo para visitar algumas pessoas com quem tenho discutido essas questões com muito mais profundidade do que no Canjerê, porque nele você tem uma diversidade muito grande de atividades e acaba sendo mais um espaço de exposição do que de aprofundamento de questões, mas é importante.

É notória a capacidade festiva dos povos de raízes africanas, e o Canjerê demonstra isso, com atividades reflexivas, políticas, culturais e religiosas. Você diria que essas são características marcantes dos quilombolas?

Na verdade, os povos de matrizes politeístas – não só africanos, mas indígenas também – fazem tudo junto e misturado. Não conseguimos viver a religiosidade separada da festividade. Nem separado das questões laborais. A gente vive de forma circular. O pessoal estranha porque, às vezes, num momento de tristeza, você está sorrindo, e num momento de alegria você está chorando. O fato de ter esse festival com várias modalidades faz parte da nossa natureza, nosso modo de vida, não daria para ser diferente. Se fosse diferente, não seríamos nós.

Sua relação com Belo Horizonte já vem de antes? E para além da participação no Canjerê, que encontros e discussões você conduz em Belo Horizonte?

A primeira vez que eu vim a Belo Horizonte foi para discutir, na Assembleia Legislativa, uma possível lei para regularizar as terras e os quilombos do Estado, lei que só foi criada agora, depois de cinco anos de discussão. A segunda vez, eu vim para participar da edição de uma videoaula produzida em parceria com a Filmes de Quintal, aqui em BH, mas a filmagem foi num quilombo lá no Piauí. Fomos percebendo o que há de parecido entre – por incrível que pareça – o povo quilombola que vive em Minas Gerais e o povo quilombola que vive no Piauí. Então, há uma confluência muito grandes desses povos dos dois Estados. Daí, nós começamos a aprofundar discussões para saber o que, afinal, gera essa confluência, quais relações nos aproximam tanto. Nesse exato momento, estamos nos relacionando com mais profundidade com os quilombolas de Minas Gerais.

E o que gera essa confluência entre os quilombos mineiros e os piauienses?

Minas Gerais e Piauí são lugares de tradições muito reservadas, pouco capitalistas. Você vai encontrar poucas expressões culturais dos quilombos de Minas sendo comercializadas. A maior parte no campo da religiosidade e das festividades, mas ainda assim não estão no campo mercantil. O mesmo você encontra no Piauí. Ao contrário do que você vive na Bahia, no Rio de Janeiro e no Maranhão. Isso, para nós, é muito importante porque é um patrimônio que vamos deixar para as próximas gerações. Minas Gerais é o único Estado do Sudeste que não limita com o litoral. Teresina é a única capital nordestina fora do litoral. Também somos um povo de rio. Em Minas, o processo de escravização se deu pela exploração dos minérios e do café, e não da cana-de-açúcar. No Piauí, tampouco foi a cana, mas a criação de gado. Ambos têm muita água e minério. A diferença é que a exploração do minério no Piauí é mais recente. Minas se relaciona com quatro regiões do Brasil, e o Piauí é o Estado do Nordeste que mais se conecta com os outros. Temos essa coisa em comum: ser uma encruzilhada, um lugar de passagem. A questão é complexa, filosófica. Mas estamos ousando pensar isso para apresentar para outros quilombos a partir de experiências ancestrais históricas.

Existe um crescente interesse de alguns professores e pesquisadores pelas discussões e questões do quilombola. Como você vê isso?

A partir da interpretação das nossas trajetórias históricas, do saber ancestral, nós trouxemos alguns temas que eles chamam de conceito. Nós trouxemos a discussão sobre a biointeração, as transfluências e as confluências que eles não costumavam falar e que agora estão usando no âmbito acadêmico. E tem uma questão mais profunda que é a cosmofobia, que entendo ser um distúrbio do povo colonialista provocada pelo medo do cosmos, pelo medo de Deus. Tudo isso é discutido com toda a simplicidade possível porque é algo resolutivo. Não discutimos apenas para mostrar que temos domínio sobre aquele assunto. Digamos que também é uma confluência entre o saber acadêmico e o saber orgânico, que é esse saber ancestral.

Você nasceu e foi criado em um quilombo (Pequizeiro), depois se mudou para outro. Como é, para você, frequentar as cidades grandes?

Tenho 58 anos e apenas cinco eu vivi na cidade. Numa espécie de adolescência tardia, quando eu fui para o Rio de Janeiro e passei por 16 empregos diferentes. Eu visito as cidades, mas vivo na roça.

Treze de maio, para você, é uma data para ser comemorada?

O marco temporal e a busca por heróis e ídolos não são coisas nossas. Apesar disso, o 13 de maio tem um significado, sim. Tem pessoas que acham importantes, outras não. A gente tem que respeitar as diversas opiniões. O mesmo acontece com o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi. Não é possível pensar apenas nele. E as pessoas que estavam produzindo durante os conflitos? Não é 13 de maio nem 20 de novembro, é uma trajetória completa. Nem é Zumbi ou princesa Isabel apenas, isolados. É todo mundo junto. Todo dia morre preto, mas todo dia preto reage.

Há uma luta nacional organizada dos quilombos em busca da demarcação das terras?

É exatamente pelo fato de não ser uma luta nacional que os quilombos ainda existem. Cada quilombo é um quilombo. Não existe ingerência de um sobre o outro. Então, o que há é uma articulação nacional, mas a luta é regionalizada, específica. Isso é o que nos faz continuar sobrevivendo.

Como você avalia a questão das demarcações de territórios quilombolas atualmente?

Cada vez que uma luta se institucionaliza e tenta resolver suas questões dentro da estrutura do Estado, ela tende a se encerrar. É um perigo muito grande. Quilombos deixaram de ser organizações criminosas somente a partir de 1888, e isso é complicado porque, a partir dali, ela passou a ser uma organização de direito, e todas as suas questões passam a ser resolvidas dentro do Estado colonialista. Então, o Estado continua colonizando. A questão das demarcações ainda é muito nova para nós. Mas eu te asseguro: titular terras apenas não é avanço. O Canjerê é muito mais importante do que o título de terra, porque ele reafirma nosso território ancestral, cultural, imaterial. Ou seja, nossa civilidade. A propriedade da terra não é uma demanda, nós topamos como uma estratégia de defesa. Documentar a terra é uma agressão, porque ela é medida pela relação que nós temos com ela. Há quem seja a favor das demarcações, outros não. Acho que é um momento de encruzilhada, um momento de escolher caminhos.

                                  Antônio Bispo dos Santos, escritor e liderança quilombola.

*Matéria original publicada no site do Jornal O Tempo, em 13 de maio de 2018.

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