Decreto 4887/2003
08 jul

Direitos constitucionais dos quilombolas

A garantia dos direitos dos remanescentes dos quilombolas tem o sentido de reparação
A  Constituição brasileira de 1988 tem sido de extraordinária importância para a correção de injustiças históricas, dando meios jurídicos para que os segmentos populacionais tradicionalmente marginalizados ou discriminados obtenham, pacificamente, o reconhecimento de sua dignidade essencial de seres humanos e a garantia da possibilidade de acesso aos direitos fundamentais que a Constituição consagra. Desse modo, embora ainda persistam muitas situações injustas, e apesar das resistências dos tradicionais beneficiários das injustiças, os direitos fundamentais estão sendo, gradativamente, praticados como verdadeiros direitos e não mais como privilégios de oligarquias regionais ou de camadas sociais economicamente superiores. Isso tudo se aplica à garantia constitucional dos direitos dos quilombolas, tema que está pendente de uma decisão do Supremo Tribunal Federal.

 Uma das injustiças históricas que o constituinte de 1988 procurou corrigir foi a garantia de direitos fundamentais aos remanescentes dos quilombos. Na segunda metade do século 20, uma série de circunstâncias políticas levou ao reconhecimento universal dos valores das culturas negras oriundas da África. Desenvolveram-se, então, estudos e pesquisas dessas culturas, o que também ocorreu no Brasil. Um dado importante, revelado por esses novos estudos e pesquisas, foi a comprovação de que, além dos quilombos remanescentes do período da escravidão, outros quilombos foram formados após a abolição legal da escravatura, em 1888. Extinto o direito de propriedade sobre os negros, estes deixaram os seus antigos senhores e foram abandonados à sua própria sorte, e para muitos o quilombo era um imperativo de sobrevivência, pois os ex-escravos passaram a conviver numa sociedade que os considerava inferiores, e nem mesmo os respeitava como seres humanos.

E assim muitos dos quilombos formados anteriormente não se desfizeram e outros se constituíram, porque, apesar de muitas limitações de ordem material, davam segurança e a possibilidade de viver em liberdade, segundo sua cultura e preservando sua dignidade. Embora se tenha avançado muito em termos de integração na sociedade, pode-se dizer que, nas atuais circunstâncias, os remanescentes de quilombos, ainda existentes, são para os quilombolas o meio de que necessitam para realização dos direitos fundamentais consagrados no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, patrocinado pela ONU e ao qual o Brasil aderiu, incorporando-o à sua ordem jurídica. Foi tudo isso que inspirou a proposta e aprovação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de 1988, dispondo que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Esse dispositivo é norma de natureza constitucional e visa a garantia de direitos fundamentais, sendo, portanto, de aplicação imediata, como determina o parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição.

Para orientar a aplicação do referido artigo 68, o Decreto federal número 4.887, de 20 de novembro de 2003, fixou critérios precisos para identificação das terras quilombolas. Houve reação dos interessados e dos que não conseguem superar seus preconceitos, como um ilustre professor universitário que escreveu que o decreto fez uma deturpação do sentido de quilombo, porque nas atuais comunidades quilombolas não existem escravos negros, como se estes ainda pudessem existir. Outros dizem ser absurdo que os próprios quilombolas se definam como tais. Na realidade, o decreto dispõe que, entre outros elementos, a caracterização das comunidades quilombolas será atestada mediante autodefinição das próprias comunidades, mas, além disso, prevê expressamente a elaboração de um relatório técnico pelo Incra, que será obrigatoriamente enviado a várias entidades públicas e privadas de caráter nacional, que deverão opinar para que, afinal, seja adotada a conclusão do Incra.  E também está expressamente assegurado o direito de defesa dos interessados, no processo de reconhecimento das comunidades quilombolas.

À semelhança do que aconteceu com territórios indígenas, invasores apossaram-se de terras dos quilombos e hoje tentam sustentar a inconstitucionalidade dos direitos dos quilombolas.  Alguns alegam ter adquirido essas terras, com a respectiva titulação, antes da existência do referido artigo 68, mas do ponto de vista jurídico nenhum título tem validade jurídica contra a Constituição. Além disso, o decreto estabelece que, se na área ocupada por remanescente quilombola incidir título de domínio não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será promovida a sua desapropriação, quando couber.

Dalmo de Abreu Dallari, jurista – Jornal do Brasil

 

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