08 fev

Há 4 anos o STF julgou constitucional o Decreto 4887/2003: Conheça a trajetória

Por Ronaldo Santos

A política de regularização fundiária dos quilombos é a agenda prioritária do movimento quilombola no Brasil. Não é à toa que na Constituição Federal de 1.988, essa é a temática que quebra o silêncio de 100 anos de esquecimento desse segmento da nossa sociedade, desde o advento da lei áurea que subtrai a palavra quilombo da agenda do Estado brasileiro. O Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

Por anos, a necessidade de regulamentação desse dispositivo constitucional através de projeto de lei, foi alvo de discussão entre juristas, havendo entendimentos divergentes a esse respeito, tendo esse debate sido superado no início dos anos 2.000, com o entendimento sobre a  auto aplicação do Artigo 68.

O decreto 4.887/03 foi construído por várias mãos, com a participação ativa da sociedade organizada, sendo publicado no dia 20 de novembro de 2.003, instituindo os procedimentos para a titulação dos territórios quilombolas e cria pela primeira vez na história, um conjunto de políticas públicas para o desenvolvimento das comunidades quilombolas do país, distribuindo competência para vários ministérios e áreas da administração pública.

A resposta das forças conservadoras foi imediata. No ano de 2.004 o PFL – Partido da Frente Liberal, atual Democratas (hoje em processo de fusão com o PSL – Partido Social Liberal para formar o partido, União Brasil) impetrou uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) junto ao STF (Supremo Tribunal Federal), de número 3.239/04, contestando a constitucionalidade do decreto 4.887/03.

 

Entre as justificativas da ADI 3.239/04, a principal alegação foi a inconstitucionalidade do ato de regulamentar um artigo da constituição por decreto do Presidente da República. Essa tese foi derrubada pelo entendimento já pacificado de que o decreto 4.887/03 é autoaplicável e que, portanto a atribuição do decreto 4.887/03 não é a de regulamentar e sim a de criar procedimentos administrativos e dar outras providências.

O julgamento da ADI 3.239/04 ficou parado de 2.004 a 2.012, quando pela primeira vez o assunto foi colocado em pauta. Com receio de um resultado desfavorável, a CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) fez um diálogo prévio com a ministra Rosa Weber no sentido de pedir vistas no processo. O ministro César Peluso, relator da ação, votou pela procedência da ADI.

O voto seguinte seria da novata ministra Rosa Weber, que imediatamente fez o pedido de vistas. Houve uma grande mobilização de quilombolas de todo Brasil que se dirigiram para Brasília em ocasião da votação, quando foi comemorado o pedido de vistas, a suspensão da votação e a preservação do sonho.

Foram anos de tensão por causa da ação impetrada no Supremo. Essa ação desencadeou uma série de outras ações nos Tribunais Regionais país afora, o que afetava os processos de titulação de territórios quilombolas em curso pelo país. A CONAQ e seus parceiros intensificaram a mobilização em defesa do decreto 4.887/03.

Foi um período de disputa acirrada, onde o setor ruralista articulou a grande imprensa e fez uma forte campanha de criminalização das comunidades quilombolas e deslegitimação da política de regularização fundiária. Mas na medida do possível, o movimento contrário se deu na mesma proporção.

A CONAQ conseguiu mobilizar acadêmicos, políticos, juristas, artistas, movimentos sociais e organizações do terceiro setor colocando luz sobre a injustiça que estava em iminência de acontecer.

 

Foram muitas idas e vindas à Brasília. A cada vez que a ação entrava na pauta de julgamento do STF os quilombolas se articulavam com maior ou menor capacidade de mobilização, mas sempre se fazendo presente. Houve vezes que entrava na pauta mas não entrava em votação por causa da dinâmica do supremo na votação de outras matérias, acabava não dando tempo.

Em outra situação, houve novo pedido de vistas. A campanha ganhou adesão, ganhou força e ganhou nome: “O Brasil é Quilombola: Nenhum Quilombo a Menos”. O tema da campanha foi cantado pelo primeiro grupo de rap quilombola do Brasil, o Realidade Negra do Quilombo Campinho da Independência, que fica em Paraty-RJ, que lançou o videoclipe oficial da campanha.

Enfim, em 08 de fevereiro de 2.018 teve fim os 14 anos de tensão e insegurança jurídica, quando todos os ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal, exceto o relator, votaram pela improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade declarando a constitucionalidade do decreto 4.887/03. Com esse advento caem naturalmente as ações movidas nos Tribunais Regionais.

Muito se comemorou, mas os tempos eram outros. O entendimento de que o Estado brasileiro deveria assegurar as condições de vida da chamada minoria de direitos dava lugar à onda de fascismo e ruptura institucional que tomou conta do governo e da sociedade.

 A consolidação das Políticas de Ações Afirmativas e reparação para o povo negro era pouco a pouco anulada pelo avanço da pauta conservadora, racista e neocolonial que ganhava a agenda nacional. A comemoração da conquista logo deu lugar a novas lutas, pois o sucateamento da política de regularização dos quilombos e suas estruturas e o fim do orçamento, fenômeno que se deu nos anos seguintes, foi tão eficaz no retardo das titulações quanto o processo de disputa judicial.

No dia em que completa quatro anos da conquista histórica, fica a reflexão de que sempre valerá a pena se organizar politicamente e lutar por direitos e que as comemorações das vitórias conquistadas serão sempre intervalo entre uma luta e outra, pelo menos enquanto não construirmos a sociedade da nossa utopia, pautada pelos valores quilombolas de produção, partilha e cuidado coletivo.

Imagem de capa: Quilombolas no STF | Foto: Carlos Moura

A musica Nenhum a Menos faz parte da “Campanha O Brasil é Quilombola, Nenhum Quilombo a Menos” – em defesa da constitucionalidade do Decreto 4887/2003. É uma produção do Realidade Negra – Rap Quilombola em parceria com o Boemia do Samba e Rapha Fellove. Assista!

 

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