13 mar

CARTA COLETIVO DE MULHERES DA CONAQ; RESISTIR PARA EXISTIR

Nós Mulheres Quilombolas do Coletivo de Mulheres Quilombolas da Coordenação de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, compromissadas com a defesa de nossos territórios, na luta por políticas de titulação dos territórios quilombolas e combate à violência contra os quilombos no Brasil, pautando as especificidades das mulheres quilombolas, em uma conjuntura presente que torna essas violências mais frequentes e evidentes.

Reunidas em Brasília no Seminário Mulheres quilombolas: Resistir para Existir, preparatório para o II Encontro Nacional de Mulheres quilombolas da CONAQ, vimos em defesa da nossa existência, de nossos territórios, da vida das mulheres quilombolas, na busca por justiça pelas vidas que foram ceifadas no país, na luta e reivindicação pela garantia de nossos direitos. Vimos repudiar e denunciar o desmonte das políticas quilombolas, perpetrado pelo Estado brasileiro.

 

 O Estado brasileiro não tem trabalhado na construção de um Plano Nacional de titulação dos nossos territórios quilombolas, conforme determinação constitucional do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Quilombolas da Constituição Federal brasileira (CRFB/1988) e convencional da Convenção 169 da OIT.  Apesar de denúncias feitas pelas organizações quilombolas e de direitos humanos à Comissão Interamericana de Direitos Humano (CIDH) e recomendações dessa para que o Brasil apresentasse um plano nacional de titulação dos territórios quilombolas por meio de consulta livre, prévia e informada às comunidades, em nenhum momento, os órgãos responsáveis pelas titulações quilombolas, se dispuseram a construí-lo.

 

O que se observa é cada vez mais um acirramento dos conflitos possessórios e cada vez mais atos ou omissões do governo com objetivo de inviabilizar a efetivação da política de titulação dos territórios quilombolas. De fato, o contingenciamento dos recursos público e as opções de gestão e reorganização administrativa do atual governo, entre elas a consolidada na Lei nº 13.844, de 18 de junho de 2019, que transferiu a competência sobre reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal e terras quilombolas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bem como a alteração da competência dos procedimentos de licenciamento ambiental por meio do Decreto Federal n° 9667/2019, e, por fim, o risco de aprovação da Lei Geral de Licenciamento Ambiental (PL 3729/04), que autoriza o licenciamento em territórios quilombolas certificados e ocupados, além de deixar de exigir o licenciamento nos chamados empreendimentos de pequeno porte ou de pequenas dimensões. 

Ao mesmo tempo em que as políticas de titulação não têm perspectiva de avanço, é preocupante o fato de o governo atuar em defesa da promoção da regularização individual nos territórios em detrimento da regularização coletiva por meio da MP nº 910, o que atenta contra os direitos territoriais da comunidade e sua autodeterminação enquanto sujeito coletivo. Lembramos que os territórios quilombolas são de propriedade coletiva, sobre os quais incidem cláusulas de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, ou seja, não pode ser transferido, não se finda no tempo, e não pode ser dado como garantia de obrigações. 

Ademais, é relevante que a pessoa nomeada pelo Presidente da República para os principais órgãos do governo dedicados à política quilombola como a Secretaria de Assuntos Fundiários, do referido Ministério, que coordenará os trabalhos do INCRA, está sendo comandada por Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista e notório opositor da política pública de titulação quilombola. A presidência da Fundação Cultural Palmares (FCP), órgão construído a partir das reivindicações e luta da população negra afrodiaspórica do país, é hoje comandada por Sergio Camargo, pessoa com histórico de discursos racistas dedicados a desqualificar as opressões sofridas pela população negra quilombola, a ação do movimento negro e a existência da escravidão. Sérgio Camargo, em uma canetada só, nessa terça-feira. 10 de março, extinguiu sete órgãos colegiados de controle e participação social da FCP, são eles: o Comitê Gestor do Parque Memorial Quilombo dos Palmares; a Comissão Permanente de Tomada de Contas Especial; o Comitê de Governança; o Comitê de Dados Abertos; a Comissão Gestora do Plano de Gestão de Logística Sustentável; a Comissão Especial de Inventário e de Desfazimento de Bens e o Comitê de Segurança da Informação, tornando-se o líder supremo da instituição, controlando tudo sem o mínimo de participação da sociedade  e dos próprios servidores da entidade. Além disso, está inviabilizada também a participação do povo quilombola e do movimento negro nas deliberações acerca das políticas pelas quais essa autarquia é responsável, eles, que reivindicaram a sua criação.

É crescente a violência contra nós quilombolas e nossos territórios nos últimos anos, sobretudo a partir de 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro, sendo possível identificar o aumento de discursos racistas e de ódio proferidos por autoridades públicas e validadas pelo próprio presidente da República, que, mesmo quando estava na condição de pré-candidato já proferia discursos de cunho racista contra a população quilombola. 

De fato, em 3 de Abril de 2017, Bolsonaro, então pré-candidato à presidência, à época Deputado Federal, em evento público realizado no Clube Hebraica, na cidade do Rio de Janeiro, proferiu discurso racista contra povos quilombolas e outros ao afirmar que “Eu fui em um quilombola em Eldourado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles. Recebem cesta básica e mais material em implementos agrícolas”. Por pressão e denúncias do movimento quilombola e de outras organizações da sociedade civil, o caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal, mediante denúncia da Procuradoria Geral da República pelo crime de racismo e por incitação à discriminação contra estrangeiros, arquivada em 2018, sob fundamento de que seu discurso configurou “manifestação política que não extrapola os limites da liberdade de expressão, garantido no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal”. Concluindo a Corte constitucional: “seja pela não configuração do conteúdo discriminatório, seja por estarem as manifestações inseridas na liberdade de expressão prevista no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, seja ante a imunidade parlamentar, a denúncia não é recebida”.

O imaginário do discurso de negação do racismo e das desigualdades raciais é ainda alimentado por um tipo específico de discurso racista, que se dirige a negar à escravidão ou relativizá-la enquanto acontecimento histórico, foi o ocorrido em 14 de maio de 2019, em sessão de homenagem aos 131 anos da assinatura da Lei Áurea, que deu fim formal à escravidão no Brasil em 1888, o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança afirmou que a “escravidão é tão antiga quanto a humanidade” e, por esse motivo, “é quase um aspecto da natureza humana”. O mesmo ocorreu em 26 de novembro de 2019, em que o procurador de Justiça do Ministério Público do Pará (MPPA), ocupando o cargo de Ouvidor Geral do Ministério Público, Ricardo Albuquerque disse que o “problema da escravidão no Brasil foi porque o índio não gosta de trabalhar”, durante palestra para estudantes do curso de Direito de uma universidade em Belém, capital do estado do Pará.

Diante dos discursos de ódio validados pela autoridade máxima do país, o contexto de violação dos territórios quilombolas e violência contra os quilombos só aumenta, é o que pretende mostrar o segundo volume da pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil (2020), a partir de levantamento de dados pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas -CONAQ e pela Terra de Direitos, que será lançada nesse primeiro semestre de 2020. A situação de violência evidenciada pela pesquisa “Racismo e Violência contra quilombos no Brasil” (2018) não diminuiu, apenas no mês de novembro de 2019, foram registrados três homicídios contra quilombolas.

Na noite de 23 de novembro de 2019, Maria Alves da Rocha de 62 anos morreu após ser baleada na comunidade de Caititu do Meio, na zona rural de Berilo (MG). Poucos dias depois, no dia 25 de novembro, o Sr. José Isídio Dias, conhecido como “Seu Vermelho”, de 89 anos, foi encontrado, morto a machadadas dentro de sua casa no Quilombo Rio dos Macacos, no Estado da Bahia. No mesmo mês de novembro, no dia 27, também no estado da Bahia, na cidade de Cachoeira, a estudante e liderança quilombola Elitania de Souza, da Comunidade Quilombola do Tabuleiro da Vitória foi assassinada a tiros. 

A ausência de políticas públicas eficazes para a proteção de defensoras e defensores de direitos humanos, as medidas adotadas pelo Governo Federal de validação dos discursos de ódio e racismo, de não titulação dos territórios quilombolas, como os discursos proferidos recentemente em Miami por Bolsonaro, afirmando que não irá demarcar mais comunidades quilombolas no Brasil,  a flexibilização da compra e posse de arma de fogo,  em especial para moradores da zona rural, e, por fim, a paralização das políticas destinadas aos povos quilombolas, contribuem para o aprofundamento das violações de direitos humanos dos povos quilombolas e de seus territórios. 

Diante disso, afirmamos que a luta pelo território possui papel central na reivindicação de nossos direitos, pois do território dependem nossa existência e o exercício dos direitos à educação, ao meio ambiente, cultura e outros.

Nós, mulheres quilombolas, temos papel central na luta política pelo território, na medida em que sustentamos, protegemos e desenvolvemos o modo coletivo quilombola! É no contexto dessa luta pelo território que a violência se produz, sobre nós, nossos corpos e sobre os quilombos, por meio de ameaças explícitas, calúnia e difamação, além de ameaças à nossa família e familiares, com a pretensão de desestabilizar nossas lutas por direitos. 

Fomos violentadas em todos os momentos da história desse país, o cenário nunca nos foi favorável, nem por isso deixamos de resistir e não vai agora que daremos passos para trás! Muito antes da abolição na lei (formal), nós lutávamos pela nossa sobrevivência e existência concretas e não será agora, diante dos retrocessos do atual governo, que vamos retroceder! Seguimos, mulheres quilombolas na luta, Resistindo para Existir.

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