Capacidade organizativa e trajetória de luta pelo direito à terra resiste nos quilombos da atualidade

Capacidade organizativa e trajetória de luta pelo direito à terra resiste nos quilombos da atualidade

“Numerosas foram as formas de resistência que o negro manteve ou incorporou na luta árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e histórica. No Brasil, poderemos citar uma lista desses movimentos que no âmbito “doméstico” ou social tornam-se mais fascinantes quanto mais se apresenta a variedade de manifestações: de caráter linguístico, religioso, artístico, social, político, e de hábitos, gestos, etc. Não nos cabe aqui, porém, discorrer sobre esses movimentos. Um movimento social e político é o objetivo do nosso estudo. Trata-se do Quilombo (kilombo), que representou na história do nosso povo um marco na sua capacidade de resistência e organização. Todas as formas de resistência podem ser compreendidas como a história do negro no Brasil.”

Pensar em quilombos, segundo a historiadora Beatriz Nascimento, requer encará-los como sistemas sociais alternativos, ou seja, muito além do que conceituavam os escravocratas coloniais, o quilombo caracteriza-se como um espaço que abrange conotações de resistência étnica e política. Tendo como característica mais significativa sua capacidade organizativa, esses sistemas nunca deixaram de existir e continuam resistindo nos quilombos da atualidade.

No artigo “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”, Nascimento afirma que, como instituição, o quilombo, a fim de resistir à opressão racista da sociedade brasileira, guarda características singulares do modelo de organização social já existente no continente africano. Segundo a estudiosa, esse fato histórico configura-se como consequência cultural da ação de mulheres e homens que não se permitiram ser considerados propriedade de outros.

A reação à violência e a posterior fundação de quilombos constitui memória de luta e resistência para negras e negros ainda nos dias de hoje. Nesse sentido, a investigação sobre quilombos e quilombolas parte da contradição dos processos de reprodução do capital, em que, por mais que um sistema de opressão domine, foi e é possível criar formas e espaços de resistência a partir das brechas desse sistema.

A reivindicação pelo direito à terra nasce intrínseca à fundação de quilombos, que só teve seu conceito elaborado pelos colonizadores portugueses em 1740, após os levantes promovidos por mulheres e homens negros do nordeste no século XVII. O pensamento de Beatriz Nascimento vai muito além desse discurso, que conceitualizou quilombo como “habitação de negros fugidos que passem de cinco, estereótipo racista que permeia o imaginário social acerca das comunidades quilombolas até hoje. Ao associar o fenômeno quilombo a um histórico espaço de resistência, a historiadora o elege como o instrumento ideológico que inaugura o século XX.

“Tendo findado o antigo regime, com ele foi-se o estabelecimento como resistência à escravidão. Mas justamente por ter sido durante três séculos concretamente uma instituição livre, paralela ao sistema dominante, sua mística vai alimentar os anseios de liberdade da consciência nacional”, assinala Beatriz Nascimento. Se antes tinha servido de manifestação reativa ao colonialismo, a historiadora defende que nos anos 70 o quilombo torna-se um código que reage ao colonialismo cultural e reafirma a herança ancestral como reforço de uma identidade histórica brasileira.

Trecho da fala de Beatriz Nascimento sobre a história do Brasil, que negligencia a história do negro tratando só do tema da escravidão deixando de lado outras formas de viver, como a organização social do quilombo, que não se esgota somente na história da repressão, retirada do documentário “O negro da senzala ao soul”, produzido pelo Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo, em 1977.

https://youtu.be/DBxLx8D99b4

Os quilombos, tal qual como conhecemos atualmente, nunca foram grupos isolados ou de populações homogêneas, mas sim espaços de sociabilidade que acolhe pessoas que mantêm traços ou vínculos culturais, como a forma de se expressar e de se relacionar com a terra. O desenvolvimento de práticas cotidianas de resistência na manutenção e na reprodução de modos de vida característicos e a histórica luta pela efetivação de seu direito ao território, configuram as comunidades quilombolas do Brasil.

Espalhados por todo território nacional, os quilombos contemporâneos não se classificam a partir de isolamento geográfico e/ou cultural, assim como a homogeneização racial não é um elemento fundamental em sua conceituação. Singulares e cheio de especificidades, esses grupos desenvolvem seu modo de vida tradicional em diferentes contextos locais.

A instrumentalização política das categorias “quilombo” e “quilombola”, forjada na luta pela terra, propõe identificar as comunidades quilombolas a partir de práticas de resistência e experiências que constroem uma trajetória comum e que cobram do Estado o reconhecimento de direito à terra.

“O surgimento deste termo no âmbito do direito e o reconhecimento do direito à terra que o acompanha, está perfeitamente alinhado com as expressões de luta contra o racismo”, acrescenta o assessor jurídico da Terra de Direitos, Fernando Prioste. Em sua pesquisa de dissertação, o advogado defende que “a ressignificação do termo quilombo é um elemento do processo histórico, material e dialético das lutas contra o racismo”.

Por Dayse Porto, comunicadora popular da Terra de Direitos

Share This