Após 130 anos da abolição, mulheres quilombolas se colocam à frente da luta por direitos

Vozes femininas lideram luta por titularidade de terras de quilombos

Da esquerda para a direita, Luciana Adriano da Silva, Lucimara Muniz, Marcia Arruda e Rafaela Fernandes Foto: Thiago Bruno
Da esquerda para a direita, Luciana Adriano da Silva, Lucimara Muniz, Marcia Arruda e Rafaela Fernandes – Thiago Bruno 
POR EDUARDO VANINI

“Ser mulher negra quilombola é ser mulher de coragem.” A frase dita pela avó soou como um presságio aos ouvidos de Rafaela Fernandes. Aos 21 anos, a jovem moradora do Quilombo Botafogo, em Cabo Frio, já entendeu o peso da luta que carrega em nome da sua ancestralidade. Também está nas mãos da sua geração manter vivas a memória e a resistência das 120 famílias que vivem ali.

— Comecei a pensar sobre isso quando tinha uns 13 anos. Em rodas de conversas, os mais velhos nos alertavam que não tinham mais a força de antes e que a gente precisava ter essa responsabilidade. Desde então, me engajei — conta a jovem, que já participou de marchas e encontros em diferentes cidades.

De natureza rural, Botafogo está entre os 3.100 quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura que comprova a origem das comunidades por meio de um estudo histórico. De acordo com a entidade, estima-se que existam cerca de seis mil quilombos no Brasil e, atualmente, dois mil estão em processo de reconhecimento.

A certificação garante o acesso a políticas públicas, mas não assegura a titularidade da terra. Isso fica a cargo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, até hoje, é uma conquista restrita a apenas 41 territórios. Outros 1.715 estão com os processos em andamento.

Diante das dificuldades, lideranças e vozes femininas que vivem nessas comunidades se articulam e tomam a frente dos trâmites, numa verdadeira confraria de força e resistência. Juntas, elas fazem ecoar as vozes de grandes matriarcas como a vó de Rafaela, Odette da Silva, já falecida.

A jovem enxerga o quilombo como símbolo máximo de uma luta que não terminou. Sair de lá não é uma possibilidade. Ali ela aprendeu com a mãe como cultivar alimentos, desenvolveu o grupo de samba Raízes e ouviu histórias fantásticas narradas pelos mais velhos. De olho no futuro, pretende cursar Administração e quer ver a comunidade prosperar:

‘“Essa terra pertence à nossa vida e à nossa alma. Guarda uma história de ancestralidade”’

– LUCIMARA MUNIZprofessora de Letras

— Minha avó pediu que a casa onde ela morava ficasse para mim. Agora estou trabalhando para transformá-la numa ONG, onde vamos oferecer atividades de cultura e esporte. E queremos ampliar nossa estrutura de agricultura familiar.

Nascida no Quilombo de Guarus/Custodópolis, em Campos dos Goytacazes, a professora Lucimara Muniz compartilha da conexão com a terra mencionada por Rafaela. Como diz, ali é o local onde ela fecha os olhos e lembra “que vem de um povo que tem um legado”:

— É quando você sente a história bem de perto. Essa terra pertence à nossa vida e à nossa alma.

Segundo Lucimara, conta-se que a primeira geração de pessoas que moraram ali tiveram suas casas queimadas pelo dono da fazenda, quando a Lei Áurea foi assinada. Mas muitos resistiram e constituíram suas vidas no terreno através de gerações até os dias de hoje. Mesmo assim, a titularidade também não é uma realidade.

Uma das consequências disso é o ciclo de invasões que a região sofre. Como não há a posse, os moradores não têm a quem recorrer. Para a professora, que também é representante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, isso representa um lamentável quadro de desrespeito:

— As pessoas que vivem ali descendem de um grupo que foi escravizado e formou, naquele lugar, um ponto de resistência. Cada quilombola guarda uma história de ancestralidade para dizer a quem pertence aquela terra.

O próprio Incra reconhece que a titulação não é um processo fácil. Segundo o coordenador-geral de Regularização de Territórios Quilombolas do órgão, Antonio Oliveira Santos, há problemas de ordem técnica e orçamentária.

— O Incra tem sofrido cortes nos recursos destinados a essa pauta. Isso tem afetado diretamente as ações da política, especialmente as indenizações dos intrusos aos territórios — relata. — Além disso, a autarquia não tem mão de obra suficiente para atender a toda a demanda apresentada para a política.

ENSAIO DE MODA MOSTRA A FORÇA DAS MULHERES QUILOMBOLAS

  • Luciana Adriano da Silva usa casaco Amaro e brincos Boutique Jurema Foto: Thiago Bruno / Direção de moda: Patricia Tremblais. Beleza: Laura Peres com produtos Mac Cosmetics. Assistente de foto: Pedro Lins. Assistente de moda: Clara Rodrigues. Assistente de beleza: Tom Souza. Produção executiva: Matheus Martins. Tratamento de Imagem: Pedro Fonseca

  • Lucimara usa top e cinto, ambos O Grito Bazar e óculos AmaroFoto: Thiago Bruno

  • Rafaela veste moletom Shoulder, saia Amaro, óculos, brincos e colar, tudo GarimppoFoto: Thiago Bruno

  • Marcia veste jaqueta O Grito Bazar, macacão Loja Três, cabeça de miçanga Fernando Cozendey, colar Garimppo e bota SollasFoto: Thiago Bruno / Thiago Bruno

  • Luciana veste jaqueta My FavoriteThings, vestido Loja Três, calça Fernando Cozendey e botas SollasFoto: Thiago Bruno

  • Da esquerda para a direita, Luciana veste gola alta Amaro, saia O Grito Bazar, cinto Fernando Cozendey e coturno Sollas. Lucimara usa calça Amaro, cinto O Grito Bazar, sapatos Comme Des Garçons para Melissa e bracelete Boutique Jurema. Marcia usa body Thaissa Becho + O Grito Bazar, calça Shoulder e sandálias Melissa. Rafaela veste casaco Renner, vestido Fernando Cozendey, brinco Garimppo e botas Melissa Foto: Thiago Bruno

Enquanto a política de titulação segue lenta, a possibilidade de remoção daquele território paira como uma assombração cotidiana sobre quem vive no quilombo. Moradora de uma das comunidades mais famosas do Rio, o Sacopã, na Lagoa, Marcia Arruda conta como é doloroso conviver com a incerteza da falta de posse do lugar onde vive. Ela e as cerca de 30 pessoas que moram ali ainda aguardam a posse pleiteada em dois processos distintos: um de usucapião, que já se arrasta há quase 40 anos, e outro junto ao Incra.

— Eu faço parte da quinta geração de moradores. Imagina ter uma casa que pertence a sua família há mais de cem anos e, de repente, você ter que sair dali? Não há paz de espírito assim — afirma ela, comentando que, mesmo sem a titularidade, o grupo é frequentemente assediado por construtoras que oferecem entre R$ 5 mil e R$ 10 mil para deixar o local.

Com o seu tio e líder do quilombo, o músico Luiz Sacopã, chegando aos 75 anos, Marcia tem se inteirado cada vez mais dos processos de posse. A experiência tem sido reveladora.

— Minha vó morreu com 92 anos e meu pai, com 86, tendo sido nascido e criado aqui. Ou seja, há uma história de pessoas que nasceram e morreram nessa terra. Não consigo me ver morando em outro lugar — diz. — Ao mesmo tempo, parece que estamos passando o bastão de um para o outro sem nunca ter a posse de onde vivemos.

O Sacopã ocupa uma área de 33 mil metros quadrados com casas na mata, compondo um raro ambiente para o meio urbano. Mas quem vive ali acompanha toda a rotina de uma cidade. Vários moradores se graduaram e construíram uma carreira no mercado de trabalho, como a própria Marcia, que foi comissária de bordo por mais de dez anos e hoje trabalha com transporte escolar. Mesmo assim, muitas pessoas ainda visitam o local achando que vão encontrar algo primitivo.

— Tem muitas crianças que vêm aqui pelos colégios e ficam surpresas ao encontrar casas normais, com TV e internet. Já os adultos ficam admirados quando dizemos que trabalhamos e fazemos faculdade — conta.

A quase 200 quilômetros do Sacopã, está a casa de Luciana Adriano da Silva. Ela foi a primeira moradora do Quilombo Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis, a se graduar, trajetória atualmente seguida por outros cinco moradores. Formar-se na Licenciatura em Educação do Campo pela UFRRJ foi um passo importante para que pudesse protagonizar avanços dentro e fora da comunidade.

— Já viajei para várias cidades e dei palestras em escolas e faculdades. O curso foi decisivo para que me tornasse capaz de contar a nossa história, muitas vezes relatada por pessoas de fora — comemora.

Com a difusão de mais conhecimento entre os moradores, a comunidade também passou a fazer um uso ainda mais aprimorado da terra. As queimadas foram deixadas de lado e a produção de orgânicos entrou em cena.

No legado cultural, a festa de Santa Rita e as rodas de jongo são o ponto alto e atraem visitantes. Luciana, diga-se de passagem, adora se apresentar com a dança:

‘“A maioria das coisas é tocada por mulheres hoje em dia. Somos a maior força dessa luta”’

– LUCIANA ADRIANO DA SILVAeducadora

— Fico emocionada e honrada ao mostrar algo que meus antepassados faziam para aliviar a dor.Os tempos mudaram, mas resistir ainda é vital.

A professora da Faculdade de Educação da UFF Elaine Monteiro, que desenvolve uma série de trabalhos com comunidades jongueiras e quilombolas, observa como a ameaça a essas comunidades é indissociável do racismo.

— No senso comum, quilombolas “ganham” terras e os ditos proprietários “perdem”. Em um país racista e patrimonialista, perdê-las para pessoas pretas é inconcebível tanto para a sociedade quanto para o Estado, que torna o processo de titulação extremamente moroso — avalia.

Como ela menciona, o próprio Bracuí, onde vive Luciana, é emblemático. A comunidade tem o testamento com a doação da área para as famílias, mas o processo de titulação se arrasta desde 1999. É por isso que mulheres como Luciana se colocam no front. No que depender delas, a luta vai longe. Com suas ancestrais, a educadora aprendeu que o poder de uma mulher nunca deve ser subestimado. Além de ter avó e mãe ligadas à militância, ela também se ampara em figuras como Joana Azevedo, uma antiga moradora do quilombo que não tinha medo de enfrentar os latifundiários.

— Certa vez, diante de uma ameaça de remoção, ela se trancou em casa e disse que só sairia de lá morta. Saiu vitoriosa — conta. — No quilombo é assim. A maioria das coisas é tocada por mulheres. Somos a maior força dessa luta.

*Matéria original do site do jornal O Globo, publicada em 13 de maio de 2018

Leia mais: https://oglobo.globo.com/ela/gente/apos-130-anos-da-abolicao-mulheres-quilombolas-se-colocam-frente-da-luta-por-direitos-22669863#ixzz5FV3O3WOg
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