Acordo com EUA em Alcântara pode causar “tragédia sem precedente”, diz quilombola

Assessor jurídico dos quilombolas fala sobre os impactos do acordo aprovado nesta semana pela Câmara sem consulta às comunidades, como prevê a Convenção 169 da OIT

A Câmara dos Deputados aprovou na noite da última terça-feira (22) o acordo assinado em março por Donald Trump e Jair Bolsonaro que permite aos Estados Unidos a utilização comercial da Base de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) teve o voto favorável de 329 deputados (contra 86) e agora vai passar pelo Senado antes de ir para a sanção presidencial. Segundo estimativas do governo brasileiro, o aluguel da base pode gerar até 10 bilhões de dólares anuais para o Brasil.

Inaugurado pela ditadura militar em 1983, o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) ocupa uma área historicamente habitada por populações quilombolas; já na época da construção da base mais de 300 famílias foram removidas de seu território. Desde 2008, o processo de titulação das terras quilombolas está parado; além disso, as comunidades não foram consultadas pelo governo federal em relação ao acordo como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada em 2002 pelo Brasil.

O governo brasileiro vem negando sistematicamente que novas famílias tenham que ser deslocadas do litoral de Alcântara para a reativação da base e seu aluguel para utilização por outros países. Uma reportagem da Folha de S. Paulo, porém, revelou em 11 de outubro a existência de documentos que demonstram que existe um plano avançado para a remoção de pelo menos 350 famílias da região. Discutido por representantes de 11 ministérios em um grupo de trabalho, o plano inclui até mesmo uma campanha de marketing para convencer moradores sobre a remoção.

Valter Campanato/Agência Brasil
Lei que permite a utilização para fins comerciais da Base de Lançamento de Alcântara, foi aprovada essa semana
Para o quilombola Danilo Serejo, assessor jurídico das comunidades e integrante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), a remoção das famílias quilombolas vai causar uma “tragédia sem precedentes”. “Nós vamos conhecer a fome em seu grau mais elevado em Alcântara, isso é uma coisa que não temos dúvida”, diz o assessor jurídico, que acusa o governo estadual de Flávio Dino (PCdoB) de “aderir à lógica bolsonarista”.

Serejo também questiona a falta de licença ambiental do Centro de Lançamento e diz que o acordo aprovado pela Câmara na última terça-feira fere a soberania nacional. Segundo ele, “não existe plano B” e as comunidades quilombolas — maioria da população de Alcântara — vão resistir. “Se o governo insistir nessa discussão, nós vamos instalar em Alcântara um cenário de guerra, porque não vamos ceder um centímetro do nosso território aos interesses do programa espacial e muito menos aos interesses dos EUA”, promete.

A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira o acordo de uso da base de Alcântara com os Estados Unidos. Como vocês receberam essa notícia?

O sentimento que nós temos aqui em Alcântara é de perpetuação das ilegalidades que vêm ocorrendo desde a década de 1980. Assim como nessa época, quando foi instalada a base, observamos novamente o desrespeito e a inobservância dos direitos das comunidades no processo de tramitação do acordo na Câmara. Embora nós tenhamos insistido muito para que Câmara instalasse procedimento de consulta prévia junto às comunidades, não fomos atendidos. O processo de regularização fundiária está paralisado desde 2008 e nunca foi titulado em função do interesse da Agência Espacial na área.

Aprovar este acordo nesse cenário de total insegurança jurídica das comunidades é muito ruim. E sem contar que o centro de lançamento também não tem licença ambiental de funcionamento. O acordo com os EUA entra e se soma a esse cenário de ilegalidades.

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Ao que tudo indica, se chegar ao presidente, o acordo será sancionado, mas antes ele precisa passar pelo Senado. Qual a expectativa de vocês em relação aos senadores?

Nós vamos tentar tudo que tiver ao nosso alcance para influir de alguma forma no Senado durante a tramitação do acordo. Agora, a expectativa que nós temos em relação ao Senado, tendo em vista que algumas pautas que têm o mesmo nível de debate e tensão, como por exemplo, o texto da reforma da Previdência, é de que o acordo não encontrará muitos obstáculos para ser aprovado.

No Congresso Nacional, o espaço mais apropriado para fazer qualquer diálogo, para propiciar qualquer tipo de participação das comunidades quilombolas e da sociedade brasileira como um todo, é a Câmara dos Deputados, que tem o dever constitucional e a responsabilidade institucional de estabelecer o diálogo mais próximo e efetivo com a sociedade. E a Câmara se recusou a assegurar às comunidades quilombolas a medida mais apropriada, que seria instaurar procedimento de consulta prévia como manda a convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário desde 2002. Mesmo assim, a Câmara dos Deputados e o presidente Rodrigo Maia não acolheram nem a nossa requisição como comunidade quilombola, nem mesmo a manifestação do MPF, que em nota técnica se manifestou pela imprescindibilidade do direito de consulta das comunidades. Ele ignorou tudo isso e tocou o barco.

Houve algum avanço na titulação desde 2008 ou está exatamente no mesmo pé?

Ele [o processo] parou em 2008 quando teve um relatório técnico de identificação publicado no Diário Oficial da União. Parou nisso porque a Advocacia-Geral da União instaurou na época procedimento de conciliação e arbitragem para tentar conciliar os interesses de autarquias da administração federal nessa situação. Na época não se chegou a um consenso, e a decisão foi para Casa Civil.

A última movimentação que nós temos conhecimento é de uma nota técnica da Casa Civil do então governo Temer assinada pelo Eliseu Padilha, firmando posicionamento pela titulação do território, exceto o litoral do município de Alcântara, onde estão as mais de 700 famílias que estão dentro da área de interesse da Agência Espacial, que corresponde a mais de 12 mil hectares. Essas famílias seriam, em tese, remanejadas do litoral pra algum lugar, que não se sabe qual, para que efetivamente o programa aeroespacial se aposse dessa área.

Não houve a consulta como é estabelecida na convenção da OIT, mas houve algum tipo de diálogo, de discussão?

Não houve. O que houve foram duas diligências nesse processo todo, desde o ano passado, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, em Alcântara. Eles realizaram duas visitas e produziram um relatório se posicionando: antes da aprovação do acordo, o governo brasileiro — e aí compreende parlamento e executivo — deveria instaurar procedimento de consulta junto às comunidades, e titular o território. Esse relatório da CDH sequer foi pautado nas últimas discussões sobre isso.

No início do mês de setembro, tivemos uma reunião com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em que ele se comprometeu conosco a aguardar a manifestação do Ministério Público. Após isso, ele tomaria uma decisão. O MP se manifestou pela realização do direito de consulta e o Rodrigo Maia não se manifestou formalmente sobre isso, se ele iria acatar, não fez qualquer tipo de despacho sobre isso, e pautou na semana passada o acordo que foi votado ontem na Câmara.

E é importante frisar que a aprovação do acordo conta com a chancela do governo do estado do Maranhão. [O governador] Flávio Dino não só é favorável, já falou isso publicamente a vários meios de imprensa, como ele também orientou toda a bancada maranhense, partidos de esquerda e da direita, a votarem pelo acordo, mesmo ciente dos riscos que esse acordo oferece às comunidades de Alcântara.

Isso nos deixa particularmente tristes, porque como todo mundo sabe, Flávio Dino é uma das vozes mais sólidas no campo da oposição ao Bolsonaro, mas nesse caso ele se perfila à lógica bolsonarista e adere ao acordo, junto do PCdoB, o PDT e o PSB. Os dois partidos do campo da oposição que se colocaram, ao longo desse período todo, efetivamente contrários, foram o PT e o PSOL.

José Cruz/EBC
Mais de 700 famílias quilombolas estão dentro da área de interesse da Agência Espacial
Você já disse que não houve diálogo com o governo federal. O governo estadual de alguma forma teve algum contato com vocês em relação a isso?

O governo do estado, em 30 de abril, realizou um painel com as comunidades em que se ele comprometeu, e o próprio Flávio Dino assinou, a se colocar na condição de mediador dessa questão, já que a maioria das pautas inerentes a essa discussão não é de competência do Estado.

No dia 6 de maio, nós tivemos uma reunião com o secretário de Direitos Humanos do estado e a secretária extraordinária de Igualdade Racial do estado. Nela ficou encaminhado que o governo instalaria uma mesa de diálogo sobre Alcântara, tendo como centralidade o acordo de salvaguardas tecnológicas e um pedido de desculpas às comunidades quilombolas — que nós estamos formalizando há algum tempo, e eles têm negligenciado — pelo primeiro decreto de desapropriação para fins de implantação da base espacial, feito pelo governo do estado, em 1980, na ditadura militar.

 

Naquela reunião de 6 de maio encaminhou-se que o governo do estado nos daria uma devolutiva e instauraria a mesa de diálogo em 15 dias. Nós estamos em 23 de outubro e até o momento o governo do estado não deu nenhuma devolutiva e sequer instaurou a mesa de diálogo. E aí [o governador] tem falado publicamente que tentou mediar a situação junto às comunidades e não conseguiu. É mentira, ele sequer instaurou a mesa de diálogo. E, enquanto eles dizem que estão se colocando na posição de mediadores, eles orientam toda a bancada maranhense a votar favorável [ao acordo de] Alcântara, e o próprio governador já fez várias falas públicas [dizendo] que é favorável a aprovação do acordo. Ou seja, descumpre o princípio básico de quem se coloca como mediador, porque assume um lado no processo.

O Ministério da Ciência, inclusive o próprio ministro, já negou algumas vezes que famílias quilombolas teriam que ser retiradas da área por conta do acordo. Que informação vocês têm acerca disso?

Informação concreta nenhuma, porque esse governo que está aí nunca estabeleceu nenhum tipo de diálogo formal com a gente. No entanto, nós sabemos que o desejo do Estado brasileiro de ocupar todo o litoral do município de Alcântara é antigo, faz parte do projeto original, de 1980. Sucessivos governos que passaram ao longo desses 40 anos, da esquerda e da direita, mantiveram esse projeto. Essa ideia é inerente ao projeto original do centro espacial de Alcântara, isso nunca foi segredo pra ninguém. Tem documentos anteriores a esse governo que provaram isso.

Há umas duas semanas a Folha trouxe à tona uma série de documentos de que o GSI está há algum tempo conduzindo essa discussão, onde fica claramente provado que a aprovação do acordo da base é condição sine qua non para determinar a ocupação do litoral de Alcântara. Ou seja, há má fé do governo federal ao silenciar sobre isso. Há má fé do governo federal ao não estabelecer um diálogo formal, institucional, claro e franco com as comunidades quilombolas de Alcântara. E há má fé dos partidos de esquerda que chancelam isso, mesmo após vir à tona todas essas documentações que comprova o alerta que as comunidades quilombolas vinham fazendo publicamente há muito tempo, e que era negado pelas autoridades públicas do país.

Agora, tem uma outra coisa: independentemente de expansão ou não da Base para o territórios das comunidades quilombolas, tem algo muito sério que está lá no acordo: ele autoriza as autoridades americanas a transitar em qualquer parte do território para recolher materiais decorrentes das atividades espaciais em Alcântara. Independentemente do território estar titulado ou não, isso, na prática, é turbação à posse das comunidades quilombolas de Alcântara.

A reportagem da Folha revela que já foram propostas até algumas peças de marketing sobre a base de Alcântara. Como vocês recebem isso?

A avaliação que a gente faz é que essa campanha é o atestado de má fé do governo sobre a situação, mas ela é, sobretudo, uma tentativa de nos persuadir. Você nega às comunidades o bom, justo e franco debate sobre o acordo e lança mão de uma campanha midiática para convencer. Isso sem ter assegurado o acesso das comunidades aos planos, aos estudos, ao todo da documentação, sem saber se há plano de remoção, para onde as comunidades iriam, como as comunidades seriam afetadas, quais os planos de compensação, de indenização. Ninguém sabe sobre isso. Quais os estudos de impacto ambiental que existem sobre isso, se é que existem?

É uma opção pelo fracasso, pelo desamparo institucional, pela tragédia e pelo racismo estrutural porque essas comunidades já vão entrar no jogo sem ter que lhes tenham sido garantidos os meios e condições para o debate. Essa campanha é um atestado de má fé do governo.

Vocês acham que existe algum caminho intermediário, algum caminho possível para que a base funcione? Ou vocês se posicionam contrários ao uso da base em si?

A discussão que nós fazemos é de que se o Brasil fizer acordo com qualquer país que seja, que se limite a usar a atual estrutura do CLA. Essa é a nossa posição, porque nós não vamos permitir, sob qualquer argumento, qualquer pretexto, que qualquer acordo, com qualquer país, tente ocupar um milímetro do nosso território. Não há essa possibilidade da nossa parte.

Caso essa retirada de fato aconteça, que impactos isso vai ter na vida das comunidades?

O impacto inicial disso é na questão de desestruturação econômica e da nossa segurança alimentar. Você vai criar em Alcântara, um cenário de tragédia no que diz respeito à segurança alimentar. Hoje, basicamente, quem mantém a vida alimentar de todas as famílias quilombolas de Alcântara, são as comunidades que estão no litoral da cidade, porque são elas que fornecem todo o pescado que abastece a própria cidade de Alcântara, e sobretudo as agrovilas, que foram remanejadas na década de 1980. Na medida em que essas comunidades saem do litoral, você vai prejudicar a vida alimentar da cidade e das agrovilas que já foram prejudicadas na década de 1980.

E a segunda coisa é: não se sabe se o governo tem algum plano de reassentamento dessas comunidades. Mas o que se sabe é que em nenhuma região hoje de Alcântara possui os recursos naturais suficientes para suprir as necessidades de mais de 700 famílias. Todas as regiões de Alcântara estão efetivamente ocupadas e utilizadas por famílias que já estão lá, a área da roça e a área da pesca, e que já dispõem de meios escassos para manter as necessidades dessas famílias. Não tem condições de receber mais de 700 e poucas famílias, [não há] recursos naturais e ecológicos. Nós que moramos em Alcântara sabemos que não tem. Se isso ocorrer, será uma tragédia sem precedentes, maior que a que ocorreu na década de 1980. Nós vamos conhecer a fome em seu grau mais elevado em Alcântara, isso é uma coisa que não temos dúvida.

Em que situação essas famílias que foram deslocadas nos anos 1980 estão?

Essas famílias que foram remanejadas na década de 80 não dispõem de boas condições de vida porque elas foram tiradas do litoral e foram assentadas em terras que não são apropriadas nem suficientes para agricultura familiar como comprovou um estudo da época. Essas famílias receberam apenas 15 hectares de terra para roça, e foram colocadas a 20 km do mar, sendo proibidas de acessar o mar pelo centro de lançamento de Alcântara. Essas famílias hoje sobrevivem basicamente de programas sociais de transferência de renda, como as aposentadorias e programas como Bolsa Família.

Em termos de alimentação, elas compram peixes que são pescados nas comunidades que ainda não foram transferidas. Ou seja, são essas comunidades que ainda permanecem no litoral que mantém as agrovilas hoje, porque não há, por parte do governo federal, nunca houve aliás, nenhuma medida de compensação. Aliás, a maioria dessas famílias que sofreram desapropriação na década de 1980 não receberam até hoje indenização. A maioria dessas ações correm ainda na Justiça.

Vocês têm algum plano para caso essa remoção se consume?

A nossa única proposta é resistir e permanecer no nosso território, porque pra gente está claro que o território é nosso. Quando a base espacial chegou a Alcântara, nós já estávamos lá. Há comunidades que estão lá desde o século 18, a terra é nossa, não existe plano B. Se o governo insistir nessa discussão, nós vamos instalar em Alcântara, um cenário de guerra, porque não vamos ceder um centímetro do nosso território aos interesses do programa espacial e muito menos aos interesses dos EUA.

Vai ocorrer uma tragédia social muito séria ali em Alcântara e é importante que os governos estejam preparados para assumir o ônus disso, porque nós não vamos abrir mão. O território é nosso e nós jamais abriremos mão dele. A nossa exigência central é que o Estado brasileiro cumpra a constituição brasileira e titule o território das comunidades quilombolas de Alcântara.

Elitiel Guedes
Nas comunidades quilombolas de Alcântara, famílias lutam para reverter a decisão no Senado
Dentro do campo jurídico, que caminho vocês pretendem seguir?

Nós já apresentamos, em abril, uma reclamação na OIT contra o estado brasileiro pelo não cumprimento do direito de consulta da Convenção 169. Essa reclamação será examinada quanto a sua admissibilidade agora em novembro. E nós temos já uma denúncia tramitando na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA contra o Estado brasileiro desde 2002. E agora estamos finalizando um informe sobre a atual situação e solicitando uma audiência pública à CIDH para apresentar essa nova situação das comunidades quilombolas de Alcântara face à aprovação do acordo com os EUA.

No âmbito nacional, vamos seguramente judicializar isso. Nós não podemos aceitar que o Estado brasileiro continue a negar nossos direitos em prol de projeto que já se mostrou falido. Porque o projeto espacial brasileiro não deu conta de sustentar o seu principal programa que era o VLS, Veículo Lançador de Satélites, que seria o programa responsável por incluir efetivamente o Brasil no grupo de países que exploraram a indústria e a política aeroespacial. O Estado brasileiro não foi capaz disso, ao longo desses mais de 30 anos, e aí a saída encontrada é a comercialização do centro de lançamento de Alcântara aos EUA e a outros países em detrimento dos direitos das comunidades quilombolas de Alcântara.

 

Nós ainda estamos estudando qual é o melhor meio de fazer isso. O que está certo é que vamos judicializar porque existe uma ação do MPF que determina à União regularizar o território das comunidades quilombolas e essa decisão nunca foi cumprida.

Na prática, o acordo da base é: se cede a base aos EUA e o ônus disso quem assume são as comunidades quilombolas de Alcântara, que permanecerão sem o seu direito de propriedade coletiva reconhecido definitivamente, como manda a Constituição. Os militares e o programa brasileiro fracassaram na gestão e nós não vamos admitir, sobre qualquer circunstância, assumir o ônus desse fracasso.

Uma das coisas que é questionada é que o acordo feriria a autonomia nacional brasileira. Vocês têm essa visão?

Sim, a gente tem esse entendimento de que o acordo também fere a soberania nacional. Existem ali duas questões sérias que não vieram à tona. A primeira é de que a base especial é um patrimônio científico do país e, na medida que esse acordo proíbe que os recursos decorrentes da atividade especial em Alcântara sejam utilizados para beneficiar o programa espacial brasileiro, ele significa uma afronta à soberania científica e tecnológica do país. E nos termos que estão ali, autorizando às autoridades americanas livre acesso a qualquer tempo ao território brasileiro e dando aos EUA exclusividade de autorizar ou não autoridades e instituições brasileiras de inspecionar o que vem dos EUA e entra no Brasil, há uma clara ofensa à soberania nacional.

Em relação aos impactos ambientais da base e do acordo, há algum estudo ambiental?

Isso é muito grave, é uma outra flagrante violação da Constituição de 1988. O CLA funciona há 38 anos sem licença ambiental. Não há sequer estudo de impacto ambiental acerca dos eventuais danos causados ao meio ambiente e às pessoas que estão ali. Ou seja, nem as comunidades quilombolas e nem a sociedade brasileira como um todo, sabe dimensionar e mensurar quais os efetivos impactos sofridos pelo meio ambiente e pelas comunidades do centro de lançamento. Sob essa ótica, é importante dizer que se há alguém na ilegalidade nesse processo todo, não somos nós comunidades quilombolas, que sempre estivemos lá e que temos a posse da terra de Alcântara. Se tem alguém na ilegalidade ali, é a base, que funciona sem que a sociedade brasileira e às comunidades quilombolas saibam os eventuais danos gerados pela atividade espacial.

Um dos pontos que quem defende a reativação da base e o acordo coloca, é em relação a benefícios financeiros na região. Fala-se até em repasse de uma parcela do dinheiro arrecadado às comunidades, uma comissão da Câmara aprovou um fundo do tipo, inclusive. De que forma vocês vêem esse argumento?

Não sei de onde é que eles tiram essa informação de vantagens econômicas porque o texto principal do acordo que foi aprovado ontem não fala nisso. Ele, inclusive, veda que recursos advindos da atividade espacial em Alcântara sejam utilizados para o programa espacial brasileiro. Não há nenhum estudo que fundamente esse argumento de supostas vantagens econômicas. Em relação ao fundo, essa discussão não passou em nenhum momento por nós. Não chancelamos, não é uma proposta que nos representa. Nós vamos querer, sim, discutir políticas de compensação, nós queremos discutir inclusive participação nos lucros gerados pelas atividades espaciais em Alcântara, que isso não é a mesma coisa que fundo de compensação que está aí. Vamos querer discutir a participação direta nos lucros gerados pelas atividades na base, isso independentemente de possibilidade de remanejamento ou não. Não dessa forma, de royalties, de fundo de compensação.

 

Atualização 24 de outubro, 16h 30: ao contrário do que estava no título da entrevista, Danilo Serejo não é advogado, mas assessor jurídico das comunidades quilombolas. A correção foi realizada a pedido do entrevistado.

A entrevista é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Crédito da imagem destacada: Elitiel Guedes

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