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Denúncia Quilombolas a CIDH

Ao Senhor

Emilio Alvarez Icaza

Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Organização dos Estados Americanos

1889 F Street, NW

Washington, D.C.

20006 EUA

Email: cidhdenuncias@oas.org

 

À Sra. Comissionada

Margarette May Macaulay

Relatora sobre os Direitos dos Afrodescendentes e contra a Discriminação Racial

Relatoria sobre os Direitos dos Afrodescendentes e contra a Discriminação Racial

Comissão Interamericana de Direitos Humanos

1889 F St. NW

Washington D.C.

20006 EUA

Email:  OSobers@oas.org

 

Ao Sr. Comissionado

Paulo Vannuchi

Comisionado Encarregado da Unidade sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Unidad sobre los Derechos Económicos, Sociales y Culturales

Comissão Interamericana de Direitos Humanos

1889 F St. NW

Washington D.C.

20006 EUA

Email:ncolledani@oas.org

 

Ref: Solicitação de utilização do procedimento previsto no art. 41 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos a respeito da titulação das terras quilombolas no Brasil

As organizações da sociedade civil infra-assinadas vêm por meio deste informar a esta Honorável Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e a sua Relatoria sobre os Direitos dos Afrodescendentes e contra a Discriminação Racial, bem como à Unidade sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sobre a situação de vulnerabilidade e opressão em que se encontram as comunidades quilombolas brasileira em razão da não titulação de suas terras tradicionais. Nesse contexto, solicitam a esta i. Comissão a utilização do procedimento previsto pelo artigo 41 “d” da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e 18 “d” do Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para formular questões ao Estado Brasileiro, tudo conforme abaixo exposto:

Através da presente oferecemos a Vossas Exa. informações técnicas e políticas acerca da lastimável situação das titulações de territórios quilombolas no Brasil. Esperamos que através do presente expediente o Estado brasileiro possa oferecer informações oficiais sobre o andamento de tal política pública constitucional, de modo a viabilizar as ações da sociedade de monitoramento.

  1. Racismo, lutas históricas e quilombos

 As comunidades quilombolas derivam e estão imersas em um contexto histórico secular de opressão de base racista. Para a compreensão do fenômeno social quilombola é necessário reconhecer que na origem da história brasileira a escravidão negra, assim como a concentração fundiária,compuseramum projeto econômico planejado e executado pelas metrópoles europeias.

A condição de escravo, porém, não foi aceita sem a insurgência de quem foi forçosamente sujeitado a essa opressão. Da perspectiva do escravizado desenvolveram-se tantas formas de resistência quantas foram as modalidades de opressão sendo o aquilombamento uma das estratégias de enfrentamento.

A resistência dos escravizados foi fundamental para a conquista da liberdade com a abolição formal e inconclusa da escravidão no ano de 1888,através da Lei Áurea.Contudo, a abolição formal da escravatura, após mais de três séculos e meio de escravidão, não alterou significativamente os padrões de dominação e opressão a que estavam sujeitos negras e negros no brasil.

Logo, é necessário reconhecer que a opressão ao povo negro não terminou com a abolição formal e inconclusa da escravidão no Brasil em 1888. Da mesma maneira é fundamental ter em conta que as comunidades quilombolas foram, e ainda estão, submetidas a um contexto de opressão racial. E nesse mesmo contexto é necessário afirmar que as comunidades quilombolas sempre foram, mesmo no período colonial, e neste momento ainda são, formas de organização para enfretamento ao racismo, e de constituição de formas autônomas e livres de vida.

 

II)       As comunidades quilombolas, a importância do acesso à terra e a concentração fundiária no Brasil

O acesso à terra é fundamental para que as comunidades quilombolas possam construir de forma autônoma condições de vida digna. Privar as comunidades quilombolas do acesso à terra relega-as a condições de vulnerabilidades econômicas, sociais, culturais e ambientais, entre outras, que reforçam a prevalência do racismo e limitam, quando não impedem por completo, a emancipação quilombola.

Sem acesso à terra os aspectos materiais e simbólicos da reprodução da vida em comunidades quilombolas restarão prejudicados na essência, pois a terra é elemento fundamental da reprodução do modo de vida tradicional. E não se fala aqui de qualquer terra, mas daquelas terras em que as comunidades se desenvolveram como tais, com as quais mantêm laços materiais e simbólicos de existência.

Apesar da importância que o acesso à terra tem para quilombolas, historicamente as comunidades tiveram acesso precário e insuficiente à terra, e por essa razão, entre outras, vivem em situações de vulnerabilidade no que diz respeito aos direitos humanos.

No Brasil, o acesso à terra foi, e ainda é, privilégio de poucos. Prova disso é o fato do Brasil ser o segundo país do mundo em concentração fundiária, com índice de Gini de 0,872, destacando-se que 1% do total de proprietários de terras rurais no Brasil detêm 49% das áreas agricultáveis do país. A extrema concentração fundiária não é um acaso, mas fruto de centenárias políticas públicas de exclusão social e racial.

Do início do processo de colonização do Brasil no século XVI até o ano de 1822 vigorou, como marco jurídico de relação das pessoas com a terra, a Lei de Sesmarias. Por tal lei só poderiam ter acesso à terra as pessoas que mantivessem estreitas relações com a colônia, e que tivessem capital para desenvolver no Brasil atividades econômicas de interesse de Portugal, como engenhos de cana-de-açúcar. A mais ninguém, com raras exceções como à Igreja Católica, era permitido ter acesso legal à terra no Brasil, inclusive aos povos indígenas que já habitavam estas terras.

Assim, foram cerca de três séculos de distribuição desigual da terra no Brasil, desigualdade essa que privilegiou uma pequena elite econômica branca de ascendência europeia, ao tempo em que explicita e diretamente impediu que negros e negras tivessem acesso à terra por vias legais. Concentração fundiária e desigualdade não são frutos do acaso.

Com o fim da aplicação do instituto das sesmarias no Brasil, passou a vigorar a Lei 601/50, mais conhecida como Lei de Terras de 1850. Em linhas gerais, estipulou regras para confirmar as sesmarias conferidas a particulares até 1822, transformando-as em propriedades privadas. Também estipulou que todas as terras que não tivessem sido dadas em sesmaria no passado, e que de quaisquer outras formas lícita não tivessem sido transferidas a particulares, seriam consideradas terras públicas. Ademais, estipulou que só seria possível a aquisição de terras públicas através da compra onerosa. Mais uma vez na história do direito brasileiro os quilombolas, bem como a população negra em geral, foram explicitamente excluídos da possibilidade legal de ter acesso à terra, pois não tinham condições de comprá-las.

Assim é que a Lei de Terras de 1850 consolidou no Brasil um quadro de alta concentração fundiária ao referendar três séculos de distribuição de terras via sesmarias, ao tempo em que impossibilitou que a população pobre tivesse acesso à terra, estipulando que apenas através da compra seria possível ter acesso a terras públicas.

Esse cenário de exclusão da população negra e quilombola do acesso à terra perdura até hoje, embora em 1988 tenha havido importante alteração no quadro normativo no que diz respeito ao acesso à terra para quilombolas.

III)             O direito quilombola à terra na Constituição Federal de 1988

Foi apenas com a Constituição Federal de 1988 que se positivou, pela primeira vez na história brasileira, um direito à terra específico para comunidades quilombolas. O dispositivo constitucional que reconhece explícita e diretamente o direito quilombola à terra se encontra no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a saber:

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos.

O reconhecimento formal do direito constitucional quilombola à terra tem a potencialidade de se apresentar como instrumento positivo de afirmação da identidade, da história e da cultura negra no Brasil. Contudo, a positivação desse direito por si só não traz grandes transformações. São as tentativas de realização material do direito que têm potencialidade de fazer com que a Constituição se transmude em efetiva possibilidade de combate ao racismo. Assim, uma vez reconhecido o direito quilombola à terra na Constituição,passou-se à luta pela sua implementação.

O funcionamento do sistema jurídico brasileiro, em especial no que diz respeito à ação de Estado para a realização de políticas públicas, prevê a necessidade demarcos normativos administrativos que estabeleçam quais os atos que o Estado deve adotar, e por quais de seus órgãos, para que se efetive o direito quilombola à terra.

A primeira norma que esteve voltada à titulação dos territórios quilombolas foi a Portaria nº 25/95 da Fundação Cultural Palmares, que estabelecia a esse órgão a competência para a realização da titulação dos territórios quilombolas, bem como estatuía algumas normas procedimentais para que se alcançasse tal fim.No mesmo ano o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), através da Portaria nº 307/95, também se auto-outorgou a competência para a titulação dos territórios quilombolas que incidissem sobre terras públicas federais.

À época havia entre a Fundação Cultural Palmares e o INCRA competência concorrente para a titulação dos territórios quilombolas, ou mesmo conflito de competências. As divergências não se resumiam à competência para a titulação, mas também quanto à forma e alcance do direito, uma vez que a forma preconizada pela Fundação Cultural Palmares tinha potencial para viabilizar a titulação de territórios de mais comunidades quilombolas, à medida que não se resumia a terras públicas federais, bem como previa a possibilidade de titulação de área maior do que a efetivamente ocupada de forma mansa e pacífica naquele momento pela comunidade.

Em função desse contexto de disputas normativas administrativas estabeleceu-se, por decreto presidencial datado de 04 de dezembro de 1996, um grupo de trabalho no âmbito do Governo Federal com a finalidade de elaborar propostas relativas aos procedimentos administrativos necessários à implementação do disposto no art. 68 do ADCT.Fruto dos debates do grupo de trabalho foi a Medida Provisória n° 1911-11, que alterou a Lei no 9.649/1998 para estabelecer ao Ministério da Cultura a competência exclusiva para a titulação dos territórios quilombolas, competência essa que foi pelo Ministério em referência atribuída à Fundação Cultural Palmares, por meio da Portaria n° 447/1999. Diante de tal delegação a Fundação Cultural Palmares editou a Portaria nº 40/2000, que estabeleceu os ritos administrativos do processo de titulação dos territórios quilombolas.

Inegável que atribuir à Fundação Cultural Palmares, naquele momento, a competência para a titulação das terras quilombolas dificultou a aplicação do art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988. Isto, uma vez que o referido órgão não contava, como ainda não conta, com uma estrutura minimamente condizente com a demanda. Não que o INCRA tivesse à época, ou mesmo agora, a estrutura desejada para titular todos os territórios quilombolas em um prazo razoável, mas é certo que a autarquia agrária tem, e tinha também à época, estrutura mais adequada para tal fim, se comparada à Fundação Cultural Palmares.

Por outro lado, o processo através da Fundação Cultural Palmares previa a possibilidade de titular áreas maiores, mais próximas do indispensável à reprodução das comunidades por seus próprios meios,pois não se restringia a titular quilombos incidentes em terras públicas federais já arrecadadas. É certo que a Fundação Cultural Palmares realizou alguns processos de titulação de territórios quilombolas, contudo não tinha competência legal para emitir os títulos de terra, o que limitava muito sua ação.

Ainda que a Portaria nº 40 da Fundação Cultural Palmares não previsse a possibilidade de desapropriações para a titulação das terras com a desintrusão de terceiros não quilombolas que tivessem títulos de domínio válidos, tinha entre suas disposições regras que davam a entender que a terra quilombola a ser titulada era maior do que aquela que a comunidade detinha posse plena. Os procedimentos adotados pela Fundação Cultural Palmares tendiam a buscar a expedição de títulos de terras que contemplassem as necessidades das comunidades quilombolas, pois não se restringia à área efetivamente ocupada pelas comunidades no momento da realização dos estudos, uma vez que estes deveriam se ater aos usos e costumes da comunidade, às terras imprescindíveis à sua manifestações culturais, bem como ao levantamento de títulos de terras de terceiros que estivessem a incidir nas terras quilombolas.

Foi diante desse contexto que no ano 2001 o então Presidente da Repúblicaeditou o Decreto Federal nº 3.912/2001, que manteve a competência da titulação dos territórios quilombolas junto à Fundação Cultural Palmares, mas limitou muito o direito quilombola, ao optar por uma interpretação do art. 68 do ADCT que lhe retirava a possibilidade de titular em favor dos quilombolas terras que lhes fossem necessárias à sobrevivência, afirmando que a Constituição garantiria a titulação apenas das terras que estivessem sendo ocupadas por quilombolas do ano de 1888, data da abolição da escravidão, a 1988, data da promulgação da Constituição Federal numa espécie de usucapião centenária.

Assim, o Decreto Federal nº 3.912/01 foi expedido para regulamentar a forma com que a Fundação Cultural Palmares deveria agir para dar cumprimento ao art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988. Fica cristalina a intervenção direta do Presidente da República para, através de decreto, impor uma visão restritiva sobre o direito contido na Constituição.

Os parâmetros para titulação das terras quilombolas estipulados no decreto em referência praticamente aniquilavam as possibilidades de titulação das terras quilombolas, seja porque seria muito difícil à maioria das comunidades comprovar a posse de uma área por mais de cem anos, seja porque historicamente as comunidades foram expropriadas de suas terras, ou mesmo nunca tiveram acesso, sem conflitos, às terras necessárias para garantir vida digna.

As bases para o cumprimento do art. 68 do ADCT da Constituição Federal, segundo o Decreto Federal nº 3.912/01, não se relacionavam com a necessidade de garantir às comunidades quilombolas condições de sobrevivência, ou seja, as bases materiais de sua reprodução conforme seu próprio modo de vida. Na verdade, o decreto fez assegurar e legitimar um processo histórico de opressão à população negra, legalizando a expropriação histórica a que estes sujeitos estão até hoje submetidos. Sem condições de terem acesso a terras que lhes garantissem meios de vida, os quilombolas continuariam a viver em condições precárias, a ter que suportar o peso de séculos de opressão racial.

Contudo, em novembro de 2003 foram publicados pelo Governo Federal dois decretos que alteraram significativamente a política pública de titulação dos territórios quilombolas. O Decreto Federal nº 4883/03 transferiu a competência para a titulação dos territórios quilombolas do Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, e o Decreto Federal nº 4887/03 alterou significativamente o procedimento para titulação dos territórios quilombolas, incumbindo ao INCRA a tarefa de conduzir os processos de titulação dos territórios quilombolas.

As alterações no procedimento de titulação dos territórios quilombolas transformaram significativamente o procedimento e, substancialmente, a compreensão sobre o conteúdo e o alcance do direito constitucional quilombola.

O marco normativo instituído em 2003 conceitua o quilombo como unidade de resistência à opressão histórica relacionada ao racismo, opressão essa do passado, mas também do presente. Ademais, é fundamental destacar que o conceito de terra a ser titulada também é diametralmente oposto ao constante do Decreto Federal nº 3.912/01, pois o novo regramento estabeleceu como parâmetro não uma ocupação centenária de determinada porção de terras, mas aquelas necessárias para a reprodução da comunidade. Ou seja, saiu-se de um marco interpretativo que restringia o conceito de terra quilombola a ser titulada a um processo de ocupação centenário, para um conceito de terra ocupada que se relaciona diretamente com a finalidade do reconhecimento do direito.

É fundamental destacar essa diferença, pois o marco normativo anterior não estabelecia qualquer relação entre o direito a ser reconhecido e a sua finalidade. É evidente que no Decreto Federal nº 4887/03 a titulação das terras quilombolas guarda estreita relação com a finalidade de garantir às comunidades quilombolas acesso à terra que lhes viabilize possibilidade de existência digna por seus próprios meios.

Assim, mesmo com o reconhecimento constitucional do direito quilombola na Constituição Federal de 1988 foram necessários 15 anos para que o Estado brasileiro chegasse a estabelecer normas administrativas que respeitassem a integralidade do direito quilombola.

IV)             Direito constitucional quilombola: a distância entre a abstração da norma jurídica e a realização prática do direito

Segundo dados do INCRA foram tituladas até o momento apenas 33 comunidades quilombolas pela autarquia agrária, havendo também outras 183 comunidades que foram tituladas por órgãos estaduais, perfazendo um total de 761.568 hectares de terras titulados em favor de comunidades quilombolas no Brasil.

Além das áreas já tituladas é possível identificar que tramitam no INCRA 1.536 (mil quinhentos e trinta e seis) processos de titulação de territórios quilombolas, sendo que apenas 219 desses processos já terminaram a fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), a que alude o art. 9º da Instrução Normativa nº 57 do INCRA, alcançando um total de 2.023.730 (dois milhões, vinte e três mil e setecentos e trinta) hectares de terras nessa fase do processo de titulação.

Assim, é possível afirmar que atualmente existem 2.785.298 (dois milhões, setecentos e oitenta e cinco mil, duzentos e noventa e oito) hectares de terras em destinação aos quilombolas, somando-se as áreas tituladas e as que contam com RTID concluído, sem que se possa ter acesso à quantidade de terras que estariam sendo trabalhada por órgão estaduais para fins de titulação, eis que tais dados não estão disponíveis para consulta. As terras já tituladas e em processo de titulação beneficiariam 369 comunidades quilombolas.

Desses elementos é possível concluir que a seguir o ritmo atual de titulação de territórios quilombolas serão necessários ao INCRA ao menos 605 anos para titular todos os processos quilombolas instaurados no âmbito da autarquia agrária. Também é viável afirmar que levando em conta o total de processos de titulação instaurados no INCRA a autarquia cumpriu com cerca 2,14% da demanda existente, levando-se em conta a quantidade de comunidades tituladas e as que ainda devem ser tituladas. Observe-se que esses dados levam em conta apenas a demanda efetivamente apresentada hoje, sendo razoável supor que a demanda tende a aumentar se o ritmo das titulações também aumentar, pois vai despertar nas comunidades o sentimento de que é possível conquistar a terra por essa via.

Somam-se a esses fatos a constatação de que o orçamento para a titulação de territórios quilombolas diminuiu drasticamente nos últimos anos. A primeira vez na história do Estado brasileiro em que houve orçamento federal para titulação foi no ano de 2009, com R$ 5.470.000 (cinco milhões quatrocentos e setenta mil reais) destinados à desapropriação de terras, valor esse que chegou em uma escala crescente a R$ 51.687.000 (cinquenta e um milhões, seiscentos e oitenta e sete mil reais) no ano de 2012. Posteriormente os valores destinados diminuíram muito, e em escala decrescente ano a ano chegou a cinco milhões de reais em 2016, e a três milhões e meio para o ano de 2017, conforme disposições das leis orçamentarias de cada ano.

Também é gravíssima a situação orçamentária do INCRA no que diz respeito à verbas necessárias para a realização dos trabalhos de titulação. A dotação orçamentária específica com tal finalidade teve início apenas no ano de 2010, com um total autorizado de R$ 6.238.754,20, valor esse que passou a R$ 5.995.072,00 em 2011, R$ 4.735.641,90 em 2012, R$ 5.071.550,00 em 2013, R$ 5.389.649,48 em 2014, R$ 4.270.482,06 em 2015, R$ 3.003.248,00 em 2016 e apenas R$ 1.388.935,00 para o ano de 2017. Dos dados é possível inferir que houve significativa diminuição do orçamento para que o INCRA realizasse o trabalho de titulação das terras quilombolas, representando o valor disponível para o ano de 2017 pouco mais de 22% do maior valor repassado ao órgão.

A quase ausência de orçamento para a desapropriação de terras em favor das comunidades quilombolas, bem como a drástica diminuição do orçamento para a realização dos trabalhos do INCRA, evidenciam que o ritmo das titulações vai diminuir ainda mais, de forma a praticamente paralisar a titulação de terras quilombolas neste ano de 2017.

Esses dados podem e devem ser confrontados com as informações do último censo agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE) divulgado no ano de 2006, quando se afirmou que havia no Brasil 5.175.636 (cinco milhões, cento e setenta e cinco mil e seiscentos e trinta e seis) estabelecimentos agrícolas, ocupando uma área de 333.680.037 (trezentos e trinta e três milhões, seiscentos e oitenta mil e trinta e sete) hectares.

Do confronto dos dados sobre as titulações com as informações do IBGE observa-se que as terras quilombolas tituladas, se considerada cada comunidade como um estabelecimento agrícola, correspondem a 0,00063% do total de estabelecimentos agrícolas no Brasil. Por sua vez, se considerarmos que cada processo de titulação existente no INCRA representaria um estabelecimento agrícola os mil quinhentos e trinta e seis processos abertos representariam se titulados 0,029% do total de estabelecimentos agrícolas do país.

Ou seja, o total de comunidades atualmente tituladas é insignificante se comparado com o total de estabelecimentos agrícolas no país. E mesmo se tituladas todas as comunidades que hoje pleiteiam pela efetivação do direito à terra a quantidade de comunidades quilombolas continuaria a ser inexpressiva frente à quantidade de estabelecimentos agrícolas existentes no Brasil.

Assim, mesmo que toda a demanda quilombola hoje existente fosse realizada não haveria impacto significativo para o mercado de terras, uma vez que a quantidade de comunidades é insignificante frente ao total de estabelecimentos agrícolas no Brasil. O mesmo também se pode dizer, com base nos dados acima expostos, quanto à quantidade de hectares de terras titulados em favor das comunidades quilombolas. Se comparada à quantidade de hectares de terras dos atuais estabelecimentos agrícolas observa-se que a soma das terras efetivamente tituladas e as que já contam com RTID teremos apenas 0,60% do total de terras dos estabelecimentos agrícolas destinadas aos quilombolas.

As informações acima dispostas indicam que até o momento, passados mais de vinte e oito anos de promulgação da Constituição Federal e outros treze anos desde a publicação do Decreto Federal nº 4887/03, a atuação do Estado foi pífia. A quantidade de terras tituladas nesse período chega a ser quase que insignificante frente à demanda, e coloca às comunidades quilombolas um cenário de desesperança, posto que o tempo estimado para a realização de todas as titulações é superior ao dobro de tempo em que houve escravidão no Brasil.

Mas, para além desse panorama geral acerca das titulações de territórios quilombolas, há situação específica que demanda atenção pelo potencial de alcance geral para a política pública em referência.

Em de novembro de 2016 o Procurador da República do município Volta Redonda requereu à Casa Civil da Presidência da República informações sobre o andamento do processo de titulação da comunidade quilombola Alta da Serra do Mar, localizada no município de Rio Claro, estado do Rio de Janeiro. O processo estava paralisado na Casa Civil da Presidência da República havia algum tempo, onde aguardava andamentos para assinatura de decreto presidencial de desapropriação de terras em benefício dos quilombolas.

Em sua manifestação afirmou a Casa Civil da Presidência da República que em razão de estar o Decreto 4.887/03 sub judice no Supremo Tribunal Federal, em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, seria recomendável “aguardar o desfecho do julgamento, a fim de se observar o princípio constitucional da segurança Jurídica”. E acrescenta que ainda que o Supremo Tribunal Federal reconheça a constitucionalidade do Decreto 4.887/03, “cabe ao Poder Executivo, observando critérios de conveniência e oportunidade que alcançaram o número de beneficiados em cada área e as possibilidades orçamentárias da União, decidir a ordem em que se dará a regularização”. Isso implica dizer que, na opinião do Poder Executivo Federal, nenhuma terra será titulada antes que o Supremo Tribunal Federal decida sobre a constitucionalidade do Decreto 4.887/03, e que ainda que declarada a constitucionalidade do decreto é ato discricionário do Executivo revisar as titulações, inclusive já realizadas.

  1. Conclusões e questionamentos

 O acima exposto demonstra que as comunidades quilombolas cotidianamente lidam com o racismos incrustrado na sociedade Brasil, e que a política pública de titulação dos territórios quilombolas ainda está demasiadamente longe de efetivar o direito constitucionalmente assegurado aos quilombolas.

Tendo em conta este contexto os peticionários servem-se da presente para, com fundamento no artigo 41 “d” da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e 18 “d” do Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, requerer que esta E. Comissão solicite ao Estado brasileiro informações sobre a política pública de titulação dos territórios quilombolas, podendo fazê-lo na forma dos questionamentos abaixo:

 

  • O Estado brasileiro elaborou algum planejamento estratégico da ação administrativa para fazer frente à demanda pela titulação dos territórios quilombolas em um prazo razoável?
  • Se referido planejamento estratégico existe, qual estimativa temporal do Estado brasileiro para dar respostas a todos os 1.536 processos administrativos de titulação de territórios quilombolas que tramitam junto ao INCRA?
  • Em caso de não existir referido planejamento estratégico, teria o Estado brasileiro disposição para, junto com as comunidades quilombolas, realizar tal planejamento estratégico?
  • O orçamento destinado à política de titulação para territórios quilombolas atende à demanda existente, tendo em conta o direito constitucional de duração razoável do processo? Porque o corte orçamentário da política quilombola de titulação de terras é muito superior ao do programa de titulação individual de terras chamado “Terra Legal”?
  • O Estado brasileiro, especificamente através do Poder Executivo da União, tem interesse ou está realizando alterações no Decreto Federal n° 4887/03?
  • O Estado brasileiro, especificamente através do Poder Executivo da União, tem intenção de paralisar a política pública de titulação dos territórios quilombolas em função da tramitação da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3239, que tramita no Supremo Tribunal Federal?

 

            Curitiba, 21 de Junho de 2017.

 

Firmam em conjunto a presente carta:

Sandra Maria da Silva Andrade – Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ

Fernando Gallardo Vieira Prioste – Terra de Direitos

Alexandra Montgomery – Justiça Global

Marluce Mello –  Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

André Villas – Bôas Instituto Socioambiental

Lúcia Mendonça Morato de Andrade  – Comissão Pró-Índio de São Paulo

Isabela da Cruz Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras

Maurício Correia Silva Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais – AATR

Roberto Rainha – Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

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