
26 de maio de 2025
Entre montanhas e memórias: Ester Fernandes e o orgulho das raízes Kalunga
Vice-presidente do território localizado em Cavalcante é uma das fundadoras da CONAQ e símbolo da luta por território, dignidade e protagonismo feminino no movimento quilombola.
Quando a trajetória da população quilombola é analisada ao longo dos anos, dificilmente você não verá uma figura feminina entre as lideranças. E isso não é uma coincidência, mas sim o resultado de fatores históricos, sociais e culturais que moldaram a organização das comunidades.
Elas sempre estiveram na linha de frente da resistência, cuidando das famílias, organizando redes de apoio de diversas formas e até hoje praticam um modelo de liderança que integra o cuidado com o coletivo, o bem viver e a escuta. Isso cria formas mais horizontais e comunitárias de organização política, que fortalecem a coesão social.
Entre elas está Ester Fernandes que por mais de três décadas tem sido símbolo do protagonismo feminino no movimento quilombola. Atual vice-presidente da Associação Quilombo Kalunga localizado em Cavalcante e uma das cofundadoras da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), possui uma história entrelaçada com a própria caminhada de reconhecimento, busca e conquista dos direitos.
Da discriminação ao orgulho Kalunga
Natural do Quilombo Kalunga, no estado de Goiás, Ester relembrou que, antes do termo “quilombo” ser amplamente reconhecido, sua comunidade era conhecida somente como “Kalunga”, uma identidade marcada por preconceito e discriminação. Chamados de “Kalungueiros” e “perrachados”, os moradores do território enfrentavam estigmas que desvalorizavam suas raízes e modos de vida. No entanto, foi exatamente essa realidade que fortaleceu sua determinação em lutar pela afirmação do território e da cultura do território..
O início da militância
A goiana começou sua caminhada no movimento em 1990, motivada por uma luta que, como ela mesma afirma, vem de seus antepassados: a defesa do território e do direito de permanecer em sua terra. Na época, participava de reuniões locais com outras lideranças da região. A presença feminina era constante – não como exceção, mas como regra. “As mulheres sempre estiveram na linha de frente”, destacou.
A CONAQ nasce da união e da marcha
O marco mais significativo de sua atuação nacional aconteceu em 1995, durante a histórica Marcha Zumbi dos Palmares. O evento reuniu comunidades quilombolas de diversos estados e culminou na entrega de um documento ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, reivindicando direitos territoriais e sociais. A marcha foi a semente para a fundação da CONAQ, em 1996, na cidade de Bom Jesus da Lapa (BA), onde Ester esteve presente, assumindo papel ativo desde os primeiros passos da articulação. “ De lá pra cá foi só reunião. Vários estados, várias lutas. Sempre juntos”, contou.
Trajetória nacional
A liderança do Kalunga ocupou a coordenação estadual da CONAQ por vários anos, levando sua voz e experiência a encontros por todo o Brasil — do Pará ao Rio de Janeiro, de Pernambuco a Alagoas. Ao lado de outros nomes históricos do movimento, como o companheiro Tico, do mesmo quilombo, ela consolidou a presença da CONAQ como força política e social na luta pela titulação de territórios, educação e saúde.
Agroecologia e economia quilombola
Entre os projetos mais recentes em sua comunidade, destaca-se o Armazém Kalunga, um espaço de comercialização de produtos orgânicos e agroecológicos, livres de agrotóxicos. Um feito bastante celebrado como fruto da luta coletiva do povo kalunga, que busca fortalecer a soberania alimentar e valorizar os saberes tradicionais. “É um trabalho muito gratificante, porque mostra a força da nossa luta e o valor da alimentação saudável”, afirmou com orgulho.
Um legado para as próximas gerações
Apesar dos desafios, como a falta de reconhecimento e o cansaço diante da luta constante, a vice-presidente vê com esperança a participação da juventude. Sua sobrinha e sua filha já trilham parte desse caminho, mesmo diante das dificuldades.
Para ela, é essencial que os mais novos compreendam a importância da associação comunitária e da CONAQ: “Foi com resistência que chegamos até aqui, e se não houver união, o risco de perder o território é real”, alerta.
Uma mensagem de continuidade
Com os 30 anos da CONAQ se aproximando, a líder potente fez questão de deixar um chamado para as novas gerações quilombolas:
“A luta não pode parar. A juventude tem que se aproximar, conhecer a história, fortalecer as associações e proteger o território. Os contra estão por aí, esperando a nossa desunião. É preciso estar junto, sempre, conhecer e lutar.” concluiu, com a sabedoria de quem entende que o futuro só floresce onde há raízes bem firmes.
Ester Fernandes é história, presente e futuro do povo quilombola. Seu nome ecoa com força nas trilhas de liberdade que os Kalunga e tantos outros ainda percorrem. Sua caminhada inspira e desafia. Mostra que a resistência não é apenas memória, mas um ato contínuo, diário, coletivo e, acima de tudo, esperançoso.
Assim como outros nomes ela faz parte de um elo entre passado, presente e futuro e sua trajetória é uma lembrança viva de que a resistência é construída com organização, solidariedade e fé na coletividade.
Texto por Thaís Rodrigues CONAQ/Uma Gota No Oceano, publicado às 14:03:54
Categoria: Ancestralidade Quilombola