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12 de maio de 2025

Do Quilombo à Constituição: A jornada de Seu Simplício Arcanjo pela terra e pelos direitos

Conheça a trajetória de um dos fundadores da CONAQ, símbolo vivo da luta por dignidade e direitos do povo negro rural no Brasil

Em uma comunidade no município de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, vive Seu Simplício Arcanjo Rodrigues, uma das maiores referências do movimento quilombola no Brasil. Nascido e criado no quilombo Rio das Rãs, este senhor não é apenas testemunha das transformações e lutas de seu povo, ele é protagonista. Com mais de 60 anos de vida dedicados à resistência e à justiça social, ele figura entre os fundadores da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), que em 2025 celebra seus 29 anos.

A história de um dos co-fundadores do movimento se entrelaça com a história de seu território e de centenas de famílias que, desde a década de 1970, enfrentaram a violência dos fazendeiros, a grilagem de terras e o preconceito histórico contra comunidades negras rurais. Ainda adolescente, com apenas 15 anos, ele já vivia o impacto direto dos conflitos de terra: 

“Eles diziam que não podíamos mais caçar, nem pescar, nem plantar. Queriam nos encurralar numa área só”, conta. O termo “agregado”, usado à época para nomear os moradores do quilombo, dava lugar ao estigma de “posseiros”, usados como pretexto para negar qualquer direito à terra.

A luta cresceu junto com ele. Em 1976, diante da pressão dos fazendeiros e da destruição das roças, os moradores do Rio das Rãs criaram um sindicato. “Foi aí que a gente começou a lutar com mais força. E a Igreja Católica também caminhou junto com a gente”, relembra.

Os anos seguintes foram marcados por agressões, ameaças e perdas: animais mortos, plantações envenenadas por agrotóxicos lançados de avião e o cerco à vida quilombola tradicional. Ainda assim, Seu Simplício seguiu em frente. “Se eu morresse, teria morrido dentro de um problema que era meu. Mas se eu escapasse, e minha família também, a gente ia acabar com isso aí.”

Essa resistência encontrou um novo impulso em 1993, quando participou de um encontro em Salvador que discutia a situação das comunidades negras no Brasil. “A gente nem sabia o que era comunidade negra direito, quanto mais quilombola”, afirma. Mas foi nesse contexto que ele ouviu, pela primeira vez, a palavra “quilombo” como sinônimo de pertencimento, história e direito. A revelação veio de um deputado que visitou a comunidade durante a tradicional Romaria da Terra e das Águas. “Ele olhou pra nós e disse: vocês são um quilombo. E explicou o que dizia a Constituição, o artigo 68.”

O artigo da Constituição Federal de 1988 mencionado acima reconheceu o direito das comunidades de quilombos às suas terras. Para Seu Simplício, foi um divisor de águas. A partir dali, nasceu uma nova fase da luta — agora com nome, identidade e respaldo constitucional. Não era apenas resistência: era também reivindicação de direitos.

Do calor da luta local até a criação da CONAQ em 1996, Seu Simplício ajudou a costurar uma das redes mais importantes de articulação quilombola do país. A CONAQ nasceu para dar voz e força às comunidades negras rurais de todo o Brasil, ampliando o alcance da mobilização por reconhecimento, demarcação de territórios e políticas públicas.

Hoje, às vésperas de celebrar quase três décadas da CONAQ, a presença de Seu Simplício é reverenciada por jovens e experientes militantes. “Não poderíamos deixar de falar com o senhor, uma liderança fundamental para Conaq e para o movimento quilombola”, disse a jornalista durante o bate-papo.

Mais do que co-fundador, Seu Simplício é memória viva e símbolo de perseverança. Sua história mostra que ser quilombola é mais do que uma identidade: é uma forma de existência coletiva, construída com dignidade, resistência e amor à terra. “Se o pobre só tinha terra debaixo da unha, hoje nós temos terra titulada. E vamos continuar lutando, porque a luta não acabou.”