Notícias

23 de maio de 2025

Do Jauary ao Brasil: a jornada de Daniel de Souza na construção da luta quilombola nacional

Uma das principais lideranças do estado do Pará relembrou a saga de seus ancestrais e a trajetória da formação do movimento

A CONAQ possui uma trajetória longa e repleta de personagens importantes que não mediram esforços para garantir a sua criação. E, prestes a completar três décadas de existência, alguns desses nomes merecem ter um pouco de sua vida relatada. 

Nesse mês de maio, que marca o aniversário do movimento, não poderíamos deixar de contar a história do cofundador Daniel de Souza, cuja vida se entrelaça com o despertar político da população quilombola no Brasil. Confira!

Herança da resistência: o início da consciência quilombola

Nascido em uma comunidade marcada pela memória da fuga da escravidão aos 11 anos, escutou do avô o relato da origem do povo do território Erepecuru em Oriximiná no Pará que havia se refugiado nas matas da região para escapar da escravidão no século XIX. Desde então, aquela memória ancestral passou a nortear sua vida por ser mais do que um relato de família. Aquele momento foi o ponto de partida de uma consciência política que atravessaria décadas.

“Eu vivenciei o medo de ser escravo, mesmo depois da abolição”, relembra. A palavra “quilombo”, em sua infância, significava refúgio, segurança e ancestralidade, mas só ganhou contornos políticos a partir do fim dos anos 1980.

Em 1988, centenário da abolição e momento de efervescência democrática no Brasil, Daniel participou do primeiro Encontro de Raízes Negras no Pará, evento que antecipou a promulgação da Constituição Federal de 1988. Lá, tomou contato com o artigo 68, que reconhece o direito à terra aos quilombolas. Isso foi um marco. No ano seguinte, em 1989, organizou o segundo encontro em sua comunidade e fundou uma associação local para iniciar a luta pela titulação.

Crédito: Foto: Acervo pessoal.

 

Luta por território e dignidade

Dispor dos documentos foi o ponto de partida para uma atuação mais ampla. Em Oriximiná, a liderança participou diretamente do processo que resultou no primeiro título de terra quilombola do Brasil. A conquista não veio sem resistências: o governo oferecia apenas concessão de uso, mas o mesmo, firme no entendimento dos seus direitos, exigia o título definitivo. “A terra é nossa por direito, já é nossa propriedade desde que resistimos aqui”, relatou.

Ao se tornar referência, passou a ser convidado para eventos e articulações em outros estados. Visitou o Maranhão, participou da formação da ARQMO (Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná) e da  ACONERUQ ( Associação das Comunidades Negras Rurais e Urbanas Quilombola do Estado do Maranhão). Atravessou o Brasil de barco, de ônibus, muitas vezes sem dinheiro nem comida. A luta era coletiva, mas também profundamente pessoal. “A gente almoçava e não jantava. Tinha dia que não almoçava”, relembrou.

CONAQ: da fundação ao reconhecimento nacional

Com outros nomes como Givânia Silva, Ivo Fonseca e Simplício Arcanjo, Daniel esteve presente na articulação que resultou na fundação da CONAQ. Apesar de constituída em 1996, a entidade não foi imediatamente reconhecida pelo Estado brasileiro. Foram necessárias mobilizações, debates e protestos. “Dávamos murros em cima da mesa, batíamos de frente com superintendentes do INCRA e com quem fosse.”

Em outro momento da entrevista, o paraense relembrou outro momento marcante: o preconceito enfrentado ao visitar quilombos como o da Marambaia (RJ), onde foi perseguido pela polícia por estar articulando a comunidade. Contudo, em 2008, a titulação de Marambaia foi um momento de emoção: “Aquela conquista teve a nossa mão, nosso suor.”

A luta pelo reconhecimento e por políticas públicas

Com o título de terra em mãos, a mobilização se ampliou. Daniel esteve à frente de pautas como:

  • Cotas específicas para estudantes quilombolas;
  • Isenção do ITR para territórios titulados;
  • Inclusão da identidade quilombola em políticas de saúde e educação.

Além disso, participou de eventos internacionais, como o Fórum Mundial de Câmbio Climático na Bolívia, enfrentando barreiras e discriminação desde o aeroporto. Trabalhou pela criação de “museus vivos” da ancestralidade, defendendo que a memória quilombola é um patrimônio essencial para o Brasil.

Uma história viva, um legado presente

Atualmente com uma grande família, o senhor de 67 anos tem orgulho de ver parte dos seus entes trilhando o caminho da educação: filhas professoras, uma bioquímica com pós-graduação em saúde pública e um filho estudando farmácia. Ao mesmo tempo, reconhece que nem todos seguiram na linha de frente da luta: “Quando a vida melhora, muitos querem se distanciar, querem ser independentes”, refletiu.

Ainda assim, ele segue ativo e é convidado para palestras por universidades e representa o Brasil em discussões internacionais sobre resistência negra, como no evento previsto na Universidade de Bolonha, na Itália, ainda neste ano.

Crédito: Parte da família de Seu Daniel. Foto: Acervo pessoal.

 

Ser quilombola = um chamado ancestral

Por fim, ao ser questionado sobre qual mensagem gostaria de deixar às novas gerações ele foi enfático: “Não basta estar quilombola, é preciso ser quilombola.” Para ele, ser quilombola é lutar não apenas por si, mas por toda a comunidade. É agir com base na ancestralidade, no coletivo e na memória. “A educação é poder. Vocês jovens precisam disputar com eles de igual pra igual, e para isso, precisamos conhecer nossa história e manter nossa identidade.”

Daniel de Souza, com sua voz firme e sua trajetória de coragem, segue sendo um alicerce da luta quilombola. Seu legado foi construído com passos firmes, memória viva e um chamado permanente para resistir e transformar.

Ele é também um exemplo de liderança que não se construiu em escritórios nem gabinetes. Sua história foi forjada na terra, na resistência e na ancestralidade. Como ele mesmo diz: “Ser quilombola é um chamado. E o Brasil precisa ouvir nossa voz cada vez mais alto.”

Sua trajetória deixa lições profundas sobre política, dignidade e identidade. E, acima de tudo, mostra que a luta quilombola é, e sempre será, um projeto coletivo de futuro. “A CONAQ vai fazer 30 anos. Espero estar vivo para ver os 50. Essa luta é pra vida toda.”