O silêncio atrás da serra

Por Jessica Raphaela e Camila Silva

Um ano depois, estupradores de crianças quilombolas continuam soltos

‘De todos os abusos sofridos pelos Kalungas do Goiás, um em particular deixa a comunidade em carne viva: os silenciosos casos de violência sexual contra meninas com idade entre 5 e 14 anos.’
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Os anos correm entre um século e outro, mas os problemas permanecem os mesmos para os kalungas. Quilombolas que há mais de 200 anos encontraram lar entre os muros de pedra da Chapada dos Veadeiros, na região norte do estado de Goiás, ainda vivem com pouca ou quase nenhuma infraestrutura. Lá, certas feridas perpassam gerações e nunca cicatrizam. De todos os abusos sofridos, um em particular deixa a comunidade em carne viva: os silenciosos casos de violência sexual contra meninas com idade entre 5 e 14 anos. Pouco adiantou figurar entre grandes reportagens da imprensa nacional em abril do ano passado. Os holofotes até atraíram o poder público que viajou os cerca de 300km de Brasília a Cavalcante para presenciar uma realidade há muito tempo ignorada. Mas passado o afã das denúncias de abuso sexual que explodiram na cidade, Cavalcante retornou ao seu curso natural. E assim os kalungas continuam a viver, no esquecimento, no abandono e, principalmente, no medo.

As vítimas de pedofilia, estupro e trabalho infantil não viram seus algozes punidos. A cidade não recebeu o básico prometido, como um delegado e um juiz fixo, e por lá só se ouve um eco dos discursos feitos há mais de um ano. O silêncio prevalece e grita alto naquelas que se arriscaram a mostrar suas feridas.

O sentimento é o de ter se exposto em vão.

De acordo com dados da Justiça goiana, até junho deste ano, nenhum dos investigados nos 47 processos de violência sexual na cidade estava na cadeia. O único condenado a regime fechado cumpre domiciliar. Outros quatro cumprem pena: um em regime semiaberto; outros dois cumprem em regime aberto e um em prisão domiciliar. Cinco estão foragidos e dez casos foram arquivados. Os demais processos estão em andamento.

“É uma situação muito triste, porque muitas famílias denunciaram. No fundo, toda essa repercussão foi negativa, porque os agressores não foram punidos. Então, a tendência é que o número de denúncias diminua, já que não houve resultado”, avalia a secretária de Igualdade Racial e da Mulher de Cavalcante, Wanderleia dos Santos. Quilombola da comunidade do Vão de Almas, Wanda, como é conhecida pelos kalungas, demonstra uma decepção indisfarçável com a impunidade, que, para ela, persiste por falta de vontade do poder público com as comunidades tradicionais. “Eles alegam que na cidade não tem um juiz, não tem um delegado. Muitos casos ficam a desejar por esse motivo. Se tivesse vontade política, se resolveria”, sentencia. Sem o delegado e o juiz efetivo recomendado por três relatórios elaborados pela Câmara dos Deputados, pela Assembleia Legislativa de Goiás e pela então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Cavalcante conta com apenas uma instância estadual: o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO). É ele que recebe e repassa as denúncias, mas vê o andamento dos processos estagnado nesse sistema. Nem mesmo o Núcleo Especializado de Apoio à Mulher (Neam), criado a partir das denúncias, resistiu. Em menos de seis meses, ele foi desfeito. Não bastasse a violência física e psicológica sofrida pelas crianças, agora elas têm que lidar com a impunidade. “A gente viu toda aquela revolução na mídia, mas, na comunidade, as famílias continuam atrás da serra, recuadas”, lamenta Wanda.

 

Relembre o caso

Ninguém sabe ao certo quando tudo começou, mas os recorrentes casos de abuso sexual infantil se tornaram públicos em abril de 2015. A questão já era velha conhecida da comunidade de Cavalcante, mas o silêncio prevalecia e as vozes das vítimas eram abafadas pelo medo de retaliação e até mesmo pela naturalização da violência. Concretizou-se na cidade a ideia de que estupro de crianças e adolescentes kalungas era cultural, longe de ser considerado crime. O receio instalou-se entre as vítimas de tal forma que, entre as procuradas pela reportagem, ninguém quis relatar as violências sofridas. “O abuso acontece primeiro no âmbito familiar. É o tio, o padrasto, o irmão, o pai. Talvez por isso essa lei do silêncio seja tão impregnada aqui. É difícil expor a própria família, denunciar o próprio pai”, relata a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), Úrsula Fernandes, presente há cerca de 20 anos no município. Os abusos só tomaram visibilidade quando saíram da esfera familiar e entraram na esfera pública. Foi a denúncia de que o vereador Jorge Elias Cheim (PSD) teria abusado de uma menina de 12 anos que chamou atenção da imprensa. Com a cobertura jornalística, eclodiu o escândalo de que crianças kalungas eram entregues pelos pais a pessoas da cidade com a promessa de estudo e moradia em casa de família. Assim, eram vítimas de exploração do trabalho infantil, além de serem abusadas sexualmente pelos patrões.  Com as denúncias tornadas públicas, surgiram os questionamentos e, finalmente, foi dado aos casos a atenção há tanto desejada. “Já era sabido. A gente já tinha pedido estrutura para investigar esses casos há muito tempo”, lembra o delegado Diogo Luiz Barreira. Na época, titular de Alto Paraíso de Goiás, foi ele quem ficou à frente da força-tarefa que resultou na abertura de 11 inquéritos contra abusadores de crianças. Para averiguar a gravidade da situação, foram apurados 57 nascimentos de crianças cujas mães eram menores de 15 anos. Os casos considerados mais graves, que envolviam “peixes grandes” da cidade, tiveram encaminhamento, mas um ano e cinco meses após as denúncias que abalaram a rotina na Chapada dos Veadeiros, ninguém está preso, nem mesmo o vereador Jorge Cheim, que teve dois pedidos de prisão preventiva indeferidos pela Justiça goiana. As investigações que se iniciaram com todo gás perderam força rapidamente assim que a imprensa se retirou da cidade. E, embora os casos averiguados sejam apontados como crimes individuais, ouve-se falar em questões ainda mais chocantes, como relata a socióloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) Tânia Cruz, que atua na Licenciatura em Educação no Campo. “O leilão das virgens é uma prática que ocorre lá. O pai e a mãe que faz isso vive uma miséria tão grande que a única chance que tem de ter uma vaquinha de leite é participar desse leilão. Para eles, não é uma venda, nem é visto como um crime”, contextualiza. “É tudo muito silencioso. Geralmente é o pai que negocia o corpo da criança”, conta. A despeito do relato ser reforçado por cidadãos da cidade, o delegado Diogo afirma que “isso nunca ocorreu enquanto trabalhei lá.” “As avós sofreram violência, as mães passaram por isso, e cria-se uma ideia de que todas as que vierem também vão sofrer esse abuso. Isso tem que parar. Isso não é cultura, é um ciclo de violência”, enfatizou a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás, Úrsula Fernandes, durante palestra realizada na festa em louvor a Nossa Senhora da Abadia, na comunidade kalunga de Vão de Almas, em agosto. O discurso combativo soa como uma bronca diante da comunidade quilombola, mas a voz da promotora Úrsula esbarra em um parentesco que comprometeu sua imagem. Representante da única instância do poder público estadual presente diariamente no município, ela é casada com o primo do vereador Jorge Elias Cheim. O político foi acusado de abusar sexualmente de uma garota de 12 anos. Ela morava e trabalhava na casa de Cheim, que também é marido da atual vice-prefeita, Maria Celeste Cavalcante Alves (PSD). O abuso teria ocorrido em outubro de 2014. Por conta do parentesco com o vereador, a promotora Úrsula declarou-se incapaz de continuar no processo, sendo substituída. Ainda assim, ela foi acusada de inoperância funcional por não ter requerido a instauração de inquéritos policiais em casos de registro de 57 nascimentos de crianças sem paternidade de mães com idade entre 13 e 15 anos. Ela também teve que responder por suposto aliciamento feito para que jovens gestantes kalungas cedessem seus filhos à adoção. As denúncias foram arquivadas em fevereiro deste ano pela Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público. Segundo o órgão, a investigação mostrou que o aliciamento não existiu e foi constatado que não ocorreram falhas na atuação de Úrsula. “Eu tenho dados que comprovam meu trabalho”, garante a promotora, e afirma que as acusações são fruto de uma briga política que vigora no município. Há, inclusive, a tese de que as denúncias contra o vereador também surgiram de divergência política. A desavença entre a prefeitura e o Ministério Público – somado à Câmara de Vereadores – é evidente, segundo o delegado Diogo Luiz Barreira. “Algumas pessoas tentam atacar a promotoria, ela já entrou com muitas ações contra a prefeitura. É uma questão política, quem é a favor do prefeito é contra a promotora”, conta, sem dizer de quem partiu a denúncia contra o vereador. A defesa do prefeito João Pereira Neto, por sua vez, surge mesmo sem questionamento. “Dizem por aí que fui eu que comecei as denúncias, mas não é verdade”, defende-se, aproveitando para se queixar da dificuldade de governar com a oposição ferrenha da Câmara de Vereadores. João ressalta, desiludido, que não tentará a reeleição, por motivos pessoais. O processo criminal que investiga a participação do vereador Jorge Elias Cheim tramita em segredo de Justiça. A Polícia Civil pediu duas vezes a prisão preventiva do acusado, mas os pedidos foram indeferidos pelo juiz Lucas Lagares. Segundo o delegado Diogo Luiz Barreira, o Judiciário alegou falta de detalhes técnicos. “Pediram um laudo psicológico da vítima, mas não tem psicólogo na região”, explica em entrevista à reportagem. Em outra ocasião, o delegado afirmou à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados que “tinham sido apresentados todos os indícios necessários” para a prisão preventiva do vereador. Sem a detenção preventiva de Cheim, o caso perdeu força, pois as testemunhas voltaram atrás nos depoimentos. “Ao final da investigação, só a vítima chegou afirmando o ocorrido. É difícil conseguir a condenação assim”, lamenta o delegado, e conta: “Disseram que a família tinha recebido uma bola de arame para retirar a queixa. Mas a gente não sabe. Eles não falam, então, é difícil afirmar.” Com o processo em andamento, o ex-prefeito do município, Jorge Elias Cheim segue atuando como vereador na cidade.

 

SOBRE @ AUTOR@: Jessica Raphaela e Camila Silva
Jéssica Raphaela  é uma jornalista brasiliense apaixonada por histórias. Transforma em texto todas as cenas interessantes que presencia, mesmo que muitas vezes as palavras fiquem guardadas no bloquinho. Trabalhou como repórter esportiva no Correio Braziliense, escreveu para crianças no portal Plenarinho e contou como é a vida em Nova York no Síntese NY. Ama música, audiovisual e fotografia.
Camila Silva é jornalista e estudante de filosofia, compartilha a ideia de que o mundo pode ser um lugar muito bom para se viver, seguindo a orientação de Jorge Ben: é preciso salvar os velhos, as flores, as criancinhas e os cachorros.

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