Comunidade quilombola preserva farmácia centenária com plantas do Cerrado

Aline Takashima
Colaboração para Ecoa, em Florianópolis (SC)
 Angela ensinando comunidade a identificar as plantas - Divulgação
Angela ensinando comunidade a identificar as PLANTAS
Imagem: Divulgação

 

Lucely Morais Pio tinha 5 anos quando acompanhou a sua avó Maria Bárbara de Morais nas matas do Cerrado pela primeira vez. De mãos dadas, elas identificavam as cascas, as folhas e raízes na savana mais biodiversa do mundo. “As plantas se revelam para nós”, sussurrava a avó parteira, benzedeira e raizeira.

Bárbara viveu até os 103 anos e deixou como legado a sabedoria tradicional de plantas que curam. Hoje, aos 57 anos, a neta Lucely ensina e luta pela preservação dos conhecimentos medicinais do seu povo em Goiás, na Comunidade Quilombola do Cedro.

Cada uma das 37 famílias do quilombo possui uma horta com ervas como douradinha, barbatimão e velame-branco. Muitas delas são desconhecidas para quem não é da região. Mas, para a maioria dos 143 moradores da comunidade, são velhas companheiras. Eles sabem quais sementes e cascas aliviam as dores e quais misturas de plantas se transformam em remédios para doenças como sinusite, rinite alérgica e infecções.

Assim como Lucely, os moradores do quilombo aprenderam sobre o poder das plantas com os seus pais e avós. São centenas de anos observando a natureza e compreendendo os princípios de cada planta.

Tudo começou na década de 1880. Naquela época, o tataravô de Lucely, o ex-escravizado Chico Moleque, finalmente conseguiu comprar a sua alforria e da sua família, a esposa Rufina e a filha Benedita.

Eles saíram de Minas Gerais, onde moravam, e se embrenharam nas matas de Goiás. Se instalaram na curva do Rio Verde, em uma área no sudoeste do estado, a 420 km da capital Goiânia (GO). O casal criou os dez filhos e, aos poucos, recebeu outros escravizados que fugiam de fazendas próximas. E, assim, formaram a comunidade quilombola.

“Nós trabalhamos com as mesmas espécies de plantas utilizadas por Chico Moleque. É um conhecimento que passa de geração em geração”, conta Lucely. É por isso que a Comunidade do Cedro se tornou uma referência nacional na utilização de plantas medicinais.

Desde 1997, as curandeiras do quilombo produzem remédios fitoterápicos no Centro de Plantas Medicinais do Cedro. Elas utilizam 450 plantas nativas e catalogadas. E as transformam em 90 medicamentos em forma de xaropes, pomadas, óleos e garrafadas – misturas de plantas medicinais. Os preparos são utilizados pelos moradores da comunidade e da região. E também de pessoas de outras cidades do Brasil como São Paulo, Brasília e Curitiba.

“Onde tem povos tradicionais, tem preservação”

1 - Lidi Vilela - Lidi VilelaLucely no curso de plantas medicinais
Imagem: Lidi Vilela

Em meados da década de 1980, mulheres e crianças se reuniam mensalmente embaixo de grandes mangueiras para fazer os remédios. Lá, produziam xaropes, multimistura e vermífugo.

Cada participante contribuía com uma planta da sua horta. No final do dia, os medicamentos eram distribuídos gratuitamente para a comunidade. Vez ou outra também se encontravam na cozinha da casa de Lucely.

Ela se consolidou como uma líder em defesa do bioma. Faz parte da Articulação Pacari, uma rede socioambiental formada por grupos comunitários que praticam a medicina tradicional no Cerrado.

O grupo é responsável pela Farmacopéia Popular do Cerrado, uma espécie de enciclopédia com mais de 300 páginas que descreve as plantas medicinais do bioma, o seu uso e formas de manejo sustentável.

É um dos pouquíssimos registros escritos sobre plantas medicinais nativas no Brasil. A pesquisa popular contou com os conhecimentos de Lucely e mais de 250 raizeiros dos estados de Minas Gerais, Goiás, Tocantins e Maranhão.

“Onde tem Cerrado e mata é onde vivem os indígenas e quilombolas. E é onde tem preservação. Quem cuida do meio ambiente somos nós, os povos tradicionais”, defende Lucely.

As comunidades indígenas e quilombolas protegem a natureza pois precisam. Elas têm motivo para se preocupar. O Cerrado abrange todo o território de Goiás, Tocantins e Distrito Federal e 22% do território brasileiro, segundo o Ministério do Meio Ambiente. Apesar da sua extensão, mais da metade do bioma foi desmatado – sendo que 42% do Cerrado virou pasto, aponta o Ministério do Meio Ambiente.

Diante do avanço da destruição, Lucey e as outras raizeiras da Articulação Pacari escolheram o caminho da preservação. Elas realizam oficinas e compartilham os conhecimentos ancestrais com diversos povos do Cerrado como os ribeirinhos, quilombolas e indígenas. “A gente resgata a nossa cultura que está acabando. Não podemos deixá-la morrer.”

As curandeiras já ajudaram a implementar mais de 200 “farmacinhas caseiras ou comunitárias”, locais onde são preparados os remédios fitoterápicos. As “farmacinhas” funcionam na cozinha de pessoas ou são construídas em um local específico nas comunidades. Nesses espaços, os medicamentos caseiros são vendidos a baixo custo ou doados a quem não pode pagar.

Missão: perpetuar a sabedoria tradicional

2 - Divulgação - DivulgaçãoCurandeiras Terezinha, Eugênia, Angela e raizeiro Gilmar Imagem: Divulgação

 

Desde criança, Ângela Maria dos Santos Morais, 66, comparava o gosto de uma raiz com a outra quando percorria o Cerrado com os seus pais e avós. A curandeira é da quarta geração de descendentes de Chico Moleque e coordenadora do Centro de Plantas Medicinais desde 1998.

A sua principal missão é perpetuar a sabedoria ancestral. “A gente está aqui para ensinar e transmitir os conhecimentos das plantas medicinais. Não vamos deixar as portas do laboratório se fecharem”, revela.

Ângela trabalha ao lado de outras três mulheres experientes e três jovens aprendizes. Simone Morais, 42, é uma das curandeiras que seca as ervas e manipula os ingredientes. Trabalha no laboratório há 20 anos.

Ao contrário da maioria das pessoas na comunidade, ela não é uma das descendentes de Chico Moleque. É, sim, casada com um raizeiro, filho de Ângela. “Eu me interessei pelas plantas medicinais quando tive filhos”, conta. E emenda: “Nós ensinamos para quem quer aprender. Meus filhos se interessam. Todos na comunidade sabem um pouco sobre as ervas. Mas a cada dia a gente aprende algo diferente”.

Não são só as raizeiras que conhecem os benefícios das plantas medicinais. O governo federal reconhece os saberes do uso de plantas e remédios caseiros desde 2006, por meio da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Incentivando, assim, a prática da medicina tradicional para melhorar a atenção à saúde das comunidades e fortalecer a agricultura familiar.

Raizeiro mais jovem tem quase 50 anos

3 - Divulgação - DivulgaçãoMorador Webertom Damaceno cuida da horta. Imagem: Divulgação

 

Enquanto as mulheres são responsáveis pelo preparo dos remédios caseiros, os homens costumam caminhar nas matas em busca de plantas, raízes e cascas. Nas planícies com arbustos e capins, Gilmar Santos Morais, filho de Ângela e marido de Simone, anda em meio a árvores fortes e pequenas com galhos retorcidos de olho nos ingredientes. Começou o ofício com 8 anos. Costumava ir sozinho para o Cerrado com uma ilustração de alguma planta ou galho em busca dos vegetais. Com o tempo aprendeu a identificar mais de 300 espécies.

Gilmar tem 47 anos e é o raizeiro mais jovem da comunidade. Ele lamenta o título. “Os mais sábios já faleceram. Os outros têm mais de 70 anos. Meu pai tem 81.”

Ser raizeiro não é tarefa fácil. “Demorei 15 anos para me tornar de fato um.” Além de identificar as plantas, Gilmar sabe quais vegetais colher de acordo com as estações. “Tem flores que só desabrocham uma vez por ano.”

Ele caminha até o meio do Cerrado para encontrar as espécies. “Não podemos pegar as plantas na beira de lavoura ou em estradas. A gente vai para o meio do mato por causa dos venenos. As nossas ervas não têm contaminação.”

Os raizeiros têm um cuidado para extrair as plantas. Isso porque as tradições do quilombo dependem do bioma para sobreviver. Não à toa, para Lucely, Ângela, Simone e Gilmar, Cerrado significa vida.

E é mesmo. O bioma abriga mais de 11 mil espécies de plantas nativas catalogadas e concentra 5% da biodiversidade do planeta. “O Cerrado é uma farmácia viva”, resume Lucely. Para a nossa sorte, se depender das curandeiras e dos raizeiros, o conhecimento e a preservação das plantas medicinais irão sobreviver. Ainda bem.

*MATÉRIA RETIRADA DO SITE OFICIAL da UOL.
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