Angola Janga: a resistência de Palmares em quadrinhos

 

O Quilombo dos Palmares, um dos principais do período colonial brasileiro, é descortinado poeticamente no livro Angola Janga, a ser lançado em 6 de novembro. Por meio dos quadrinhos, o ilustrador Marcelo D’Salete desenha e narra a história de personagens negros como Zumbi, Antônio Soares, Ganga Zumba e Ganga Zona. Principal liderança do quilombo, Zumbi morreu em 20 de novembro de 1695. A data é comemorada anualmente como o dia da Consciência Negra.

Após se dedicar à temática racial em Encruzilhada (2016) e Cumbe (2014), D’Salete revela em sua nova obra como os quilombolas de Palmares resistiram ao sistema da casa-grande. Um tema importante para a afirmação da população negra, pobre e quilombola no atual cenário de ataques às minorias. “Essa não garantia de direitos, ainda mais hoje sob o golpe, mostra mais uma faceta de como a nossa história é violenta. E continua sendo. Contra isso, a gente precisa se organizar conhecendo e aprendendo mais.” Confira a seguir a entrevista com o autor:

CartaCapital: Por que você escolheu o título Angola Janga?
Marcelo D´Salete: O livro é sobre o antigo Quilombo dos Palmares, antes conhecido como Mocambo de Palmares. Eram mais de dez mocambos espalhados na Serra da Barriga, e um dos nomes que eles utilizavam para falar de Palmares era Angola Janga, dizem que os próprios palmaristas chamavam aquele local de Angola Janga.

Angola Janga significa pequena Angola, vem de uma língua do tronco banto, chamada quimbundo; alguns outros também falam que seria Mini-Angola, mas tudo da região de Angola. Então é um livro que fala sobre esses grandes mocambos do Brasil do século XVII e conta um pouco o que aconteceu por lá nas últimas décadas.

CC: Foram 11 anos de pesquisa. Quais foram os desafios de investigação de imagem e de registro histórico para tratar de uma parte da história repleta de incertezas, e até vítima de um certo esquecimento?
MS: Foi importante pesquisar historicamente o período para falar de Palmares em Angola Janga, para recuperar essas histórias. Há algumas descrições interessantes, e quanto à imagem, existem alguns artistas, tais como Frans Post e E. Caut, que estiveram na região de Pernambuco no século XVII e fizeram retratos de pessoas e da paisagem. Foi um ponto de apoio interessante.

Foi muito importante também ter pesquisad no Museu Afrobrasil. Eu trabalhei no AfroBrasil durante um tempo, e conhecer um pouco da história desses povos a partir da fotografia, ou de obras de arte, ajudou muito a pensar em como criar essa história a partir de imagens. Nessa pesquisa em que comecei em 2006, acabaram surgindo outros livros, como Noite e Luz e o Encruzilhada, e eu só comecei a me sentir à vontade para começar a fazer os esboços por volta de 2010, tudo isso para conseguir ter todo esse apanhado de imagem, de referência, para tornar isso interessante na forma de histórias em quadrinhos.

CC: Estima-se que o Quilombo dos Palmares atingiu mais de 20 mil quilombolas na segunda metade do século XVII. Quais foram os fatores desse crescimento?
MS: Por volta do ano 1600, Palmares cresceu muito. Algumas pequenas expedições que foram até lá lutar contra os palmaristas não conseguiram destruir os mocambos, porque eram vários e estavam espalhados em várias regiões, eram distâncias de 20, 30 quilômetros separando um mocambo do outro. Quando ocorre a invasão, a ocupação de Recife e Olinda pelos holandeses, ocorre que muitos desses africanos escravizados aproveitaram o conflito entre para fugir para Palmares.

Entre 1630 e 1654, Palmares cresce ainda mais, chega a ter entre 20 mil e 30 mil pessoas. Macaco, que era o principal Mocambo, a capital de Palmares, tinha cerca de 6 mil pessoas, e se compararmos com a época, no Recife, por volta de 1650 tinha cerca de 8 mil pessoas, então era outra nação. Era realmente um Estado quase independente ali na região de Pernambuco, onde milhares de negros escravizados fugiam para conseguir ser livres e tinham uma autonomia muito maior para decidir sobre as suas próprias vidas. Eram pessoas que estavam procurando outra forma de se relacionar com aquele espaço, muito longe do que seria a lógica colonial da escravidão.

CC: Partindo dessa ideia de nação, quantas Áfricas havia dentro de Palmares?
MS: Eram povos que falavam quimbundo, ovimbundo, umbundo, conga, várias outras línguas que influenciam muito o nosso português. Nossa língua tem uma presença muito forte de palavras de origem do quimbundo e de origem banto, que muitas vezes a gente não tem consciência, como marimbondo, quindim, moleque, palavras que vêm dessas origens, dessa história. Tentei trazer isso um pouco para o livro a partir desses termos de origem banto, tentando relacionar também com algumas coisas que aconteciam na região de Angola naquela época.

CC: Você poderia dar um exemplo?
MS: No Reino de Bongo e no Reino de Matamba, por exemplo, no século XVII, lá em Angola, havia conflitos com a rainha Zinga, e ela enfrentou os portugueses em várias batalhas, algumas a rainha ganhou, outras perdeu. Temos notícias de que muitos dos guerreiros dessa rainha vieram para o Brasil e podem ter chegado inclusive à região de Palmares. Relacionar um pouco essas histórias dos dois lados do Atlântico foi a intenção do livro, mas também, trazer vários elementos dessas culturas, principalmente de Congo e de Angola, como os símbolos – o Sona por exemplo –, que são dos chocué, que faziam na areia e contam histórias e vários outros elementos culturais.

CC: Por que contar a história do Quilombo dos Palmares?
MS: Palmares é uma história em que os protagonistas são protagonistas negros. Homens e mulheres procurando ali mais autonomia sobre suas próprias vidas. Isso é muito importante. Essas histórias, essas narrativas com personagens negros em primeiro plano, falando sobre suas angústias, sobre as suas procuras, sobre as suas dúvidas, ainda é algo não muito visível para grande parte do público brasileiro.

Eu penso que isso é uma estratégias de discriminação muito forte. De você não dar identidade para aquelas pessoas. Mesmo no pós-Abolição, a gente viveu um momento de verdadeira subcidadania para grande parte da população negra e pobre do País. E essa subcidadania ocorre muito a partir dessa ideia de não dar, de fato, humanidade para essas pessoas, não compreendê-las como indivíduos. Não entender essas pessoas, de fato, como seres humanos, com suas vontades, com seus medos e seus problemas. Penso que o livro pode fomentar uma discussão sobre o nosso passado, e sobre a história do negro no Brasil.

CC: Além de Zumbi, qual outro personagem de Palmares você destacaria?
MS: Um personagem que é muito importante em Angola Janga é Antônio Soares, que foi um dos homens de Zumbi. A história é muito contada a partir da perspectiva dele. Existe apenas uma documentação que fala sobre Soares, no próprio final da saga de Palmares, quando ele é um dos últimos homens próximos de Zumbi. Essa foi uma história interessante de se imaginar, já que ela na verdade era apenas um pequeno parágrafo no livro.

CC: Como você aborda os conflitos entre o poder colonial e os palmaristas?
MS: Havia tentativas de negociação entre os quilombolas e o poder colonial. Isso aconteceu com Ganga Zumba, antigo líder de Palmares. Em 1678, ele fez um acordo com o poder colonial, com a Coroa, para ter uma vila separada ali. Ganga Zona, que era irmão de Ganga Zumba, foi um grande negociador naquele momento. Aí houve uma grande cisão entre quem queria ir para Cucaú, que era de Ganga Zumba e Zona, e quem permaneceria em Angola Janga, em Palmares. Eu tentei mostrar um pouco desse conflito no livro também, acho que é um elemento interessante para tratar, em termos de histórias em quadrinhos.

E trazer ali um pouco do objetivo de cada um desses personagens para agirem daquele modo. Palmares também era um espaço extremamente bélico, militarizado, até porque anualmente havia expedições luso-brasileiras tentando destruir aqueles mocambos. Então eles precisavam ser muito articulados e precisavam ser muito aguerridos para lutar contra essas investidas. Então, trabalhar com esses elementos e tentar construir esses personagens a partir disso foi algo bem interessante e é um pouco do que o livro traz.

CC: Existe alguma relação entre os quilombos de antigamente e os que resistem até hoje?
MS: Penso que sim. Palmares não foi o único quilombo, o único grande mocambo aqui no Brasil. Na verdade, existiram muitos outros, tanto naquele período, quanto nos séculos seguintes também, e quem vem até hoje. São quilombos com histórias bem diferentes, sim, mas creio que tenha ali um elemento em comum, que é, essas pessoas procurarem se articular em grupo e constituir um espaço onde eles decidem como será o trabalho, como que será a divisão desse trabalho, entre aquele grupo, sem esse modo tão hierárquico, e totalmente baseado na violência, que foi a partir da escravidão.

CC: Como você analisa as atuais decisões dos governantes em relação aos quilombos?
MS: Os quilombos contemporâneos estão ameaçados por grande fazendeiros e empresas. Não à toa, eles tocam em algo que no Brasil é nevrálgico, a divisão da terra. O pós-Abolição não trouxe garantia de que esse libertos teriam terra e trabalho.  Nesse ano houve um aumento grande dos conflitos em quilombos e também em aldeias indígenas. E isso acontece por quê? Por causa de um governo ilegítimo e também devido às investidas desses grandes empresários contra essas populações que estão em uma situação mais frágil. Mas, logicamente, enquanto grupo, a gente pode lutar contra isso.

Essa não garantia de direitos, ainda mais hoje, sob o golpe, mostra mais uma faceta de como a nossa história é violenta. E continua sendo violenta. A gente precisa se organizar conhecendo e aprendendo mais.

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