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13 de março de 2025

A luta dos quilombolas para manter vivo os cânticos vissungos

Conheça um pouco da história da oralidade presente nos quilombos do norte de Minas Gerais

A cultura quilombola é extremamente rica, encantadora e repleta de ancestralidade. No entanto, devido ao passado escravocrata do Brasil, muitas práticas e costumes foram vítimas de apagamento. Porém, uma em específico segue viva graças aos esforços de membros de comunidades que não deixaram a prática ser apenas mais uma página tirada de sua vasta história. Esse é o caso dos cânticos vissungos.
Por isso, no artigo de hoje vamos explorar um pouco mais dessa oralidade cativante que alguns quilombos do norte de Minas Gerais lutam para preservar. Confira!

O que são os Vissungos?

Antes de tudo, é preciso explicar a origem do termo. A palavra está ligada aos povos Bantos que foram trazidos para o Brasil e desembarcaram em portos de cidades importantes como Salvador, Recife e Rio de Janeiro. Apesar das diferenças étnicas, eles compartilhavam o mesmo grupo linguístico, que engloba mais de 400 idiomas.

Essa prática foi se tornando parte do cotidiano das comunidades quilombolas, sendo usada em momentos de celebrações, como festas religiosas, funerais, celebrações e até em rituais de cura. Esses cânticos, que possuem raízes nas línguas africanas e nos costumes trazidos pelos negros escravizados, são compostos por melodias e letras que falam sobre o sofrimento, as esperanças e a luta contra a opressão, além de servir como um meio de preservação da memória ancestral.

Crédito: Mestre Ivo Silvério da Rocha (Foto: Rudá K. Andrade)

Já a palavra “vissungo” em si pode ter diferentes interpretações, dependendo da comunidade, mas, de maneira geral, ela se refere a um canto profundo e ritmado, que, além de envolver a vocalidade, está muitas vezes associado ao uso de instrumentos musicais tradicionais, como tambores e atabaques, criando uma sonoridade única e poderosa.

A preservação dos Vissungos

Para as comunidades quilombolas, os vissungos são muito mais do que simples manifestações culturais; eles representam a resistência histórica e a luta pela sobrevivência. Durante o período da escravidão, os negros escravizados utilizaram a música como forma de manter viva a conexão com suas raízes e a sua cultura, mesmo diante da opressão e da brutalidade.

No entanto, com o passar do tempo, a pressão da sociedade dominante e os desafios econômicos, sociais e culturais impuseram sérios obstáculos para a transmissão dos vissungos.

Desafios na manutenção dos cânticos

A luta para manter esta oralidade viva não é fácil. A globalização e a urbanização têm causado um distanciamento progressivo das novas gerações em relação às suas tradições culturais. Muitos jovens quilombolas, em busca de educação formal ou melhores condições de vida, migram para as cidades, onde as tradições de suas comunidades acabam sendo ofuscadas pelas demandas da vida urbana e pela pressão para se integrar à cultura dominante.

Além disso, a falta de reconhecimento oficial e de políticas públicas adequadas para o fortalecimento da cultura quilombola tem dificultado o apoio a essas práticas. Em muitos casos, a desvalorização das manifestações culturais tradicionais e a escassez de recursos para a promoção e ensino dos vissungos nas escolas comunitárias resultam em um processo de esvaziamento dessa rica tradição.
Outro ponto relevante é a escassez de registros formais. Embora os vissungos sejam passados de geração em geração de forma oral, a falta de registros sonoros ou escritos enfraquece a sua preservação. Sem a documentação adequada, é mais difícil para as comunidades manterem e expandirem essas práticas.

“O vissungo ninguém acha ele escrito hoje, não foi escrito, ele não deixava isso pra ninguém. Era a curiosidade da gente ouvir e dar seguimento no processo, prestando atenção, e quando eu cheguei aquele momento, ele depois falava assim, falou que tá, morreu lá na nossa sala, lá no Quilombo, é a hora do trajeto de levar esse corpo”, relatou Mestre Ivo Silvério da Rocha, membro do Quilombo Baú do Distrito de Milho Verde em Serro, Minas Gerais e último vissgungueiro do Brasil em entrevista a série Força das Raízes, da GloboNews com apoio da CONAQ e da ONG Uma Gota no Oceano.

A história do Vissungos no Quilombo do Baú (MG)

Situada a cerca de 10 quilômetros de Milho Verde, Minas Gerais, a comunidade do Quilombo do Baú possui cerca de 27 famílias. Relatos dos moradores enfatizam que os escravizados fugidos das fazendas do entorno foram os primeiros a se estabelecerem na localidade. Contudo, até os anos noventa não tinham estradas, eram apenas caminhos estreitos que percorriam os morros da região.

Dessa forma, as pessoas precisavam caminhar três, quatro horas para conseguir algum tipo de atendimento. E quando alguém falecia, os quilombolas cantavam para passar o tempo e para ter forças para carregar o corpo pelo caminho.

“Os cânticos comunicavam, né? Aí tinha um tempo que cantava uma música, aí sabia que era para dar uma mão para ajudar ali, porque tá pesado o corpo. Então nós saímos todos para enterrar, para chegar na porta do cemitério, sair da porta de casa, pra levar pro cemitério, né? E até as coisas tudo já. Certas”, contou Enilson Viríssimo, liderança do Quilombo Ausente (MG).

A transmissão dos vissungos eram feitas de uma geração para outra, sendo feita por meio de mestres e mestras, que, com paciência e dedicação, ensinavam os jovens a entoar as canções e a entender o significado por trás de cada melodia.

Por ser o último vissungueiro, Mestre Ivo fez questão de passar para o papel tudo o que aprendeu para manter viva a memória do seu povo. E esse esforço foi reconhecido com o prêmio Territórios Quilombolas, dado pelo Governo Federal em 2012 ao livro “Memórias de um Catopê”.

A luta dos quilombolas para manter vivos os cânticos vissungos é um reflexo da resistência e da força dessas comunidades frente aos desafios históricos e contemporâneos. Esses cânticos são mais do que apenas canções; são a expressão de um legado de luta, fé, identidade e memória.

Apesar das dificuldades, a força dessas comunidades e a dedicação em preservar suas tradições culturais mostram que os vissungos ainda têm um papel vital na sociedade brasileira e continuam a ser uma ferramenta de resistência e afirmação cultural.